Às vésperas do AI-5 , o jornalista Paulo Patarra conversou com o então líder comunista Luís Carlos Prestes para a Revista Realidade
Paulo Patarra , Realidade , em São Paulo
O carro subiu uma ladeira e foi parando . O homem magro , de chapéu e cachecol , tinha ficado em silêncio as últimas duas ou três horas . Ele fumava muito , o que me permitiu observá - lo um pouco , enquanto acendia seus cigarros , que sempre me oferecia . Impossível ver - lhe o rosto : estávamos na parte de trás do veículo - talvez uma perua Ford , inteiramente fechada - que tinha uma abertura , entre a cabina e o interior , coberta por uma cortina escura que deixava passar o ar , mas quase nenhuma claridade . Com o carro parado , o homem me disse apenas para fechar os olhos , ao mesmo tempo que - sem que eu esperasse - jogou a luz de uma lanterna no meu rosto . Obedeci , a luz era muito forte , enquanto ouvia abrirem a porta . "Via" tudo avermelhado , através das pálbebras fechadas e iluminadas pela lanterna . Meus cálculos estavam atrapalhados : poderia jurar que era dia , mas sentia que já anoitecera , ou - pelo menos - tínhamos entrado em uma garagem . Levantei - me do colchão e saí do carro amparado por alguém , andei uns vinte passos , subi três degraus dei mais uns passos , uma porta se fechou atrás de mim . Aí , uma voz desconhecida avisou que eu podia abrir os olhos .
A sala - uma sala de jantar comum, com mesa , quatro cadeiras e cristaleiras - ligava - se a uma saleta , com um sofá e duas poltronas , mais uma estante de livros . O lugar era escuro , com duas janelas , protegidas por grossas cortinas . A única iluminação vinha da porta aberta da cozinha , que estava com a luz acesa . No sofá , bem no meio do sofá , havia alguém sentado . Quando olhei pra lá , o homem do sofá ficou de pé ; cerca de 1 metro e 65 centímetros , magro , rosto fino de traços pouco visíveis a uns quatro metros de distância . Ao meu lado , alguém que eu ainda não vira, corpulento e baixo , me disse com um leve sotaque nordestino , falando baixo e pausado :
- Este é o camarada Prestes .
O homem do sofá pareceu sorrir , fez um gesto que era quase uma continência e disse simplesmente :
- Muito prazer .
Ao som do "muito prazer" ( nem tive tempo de responder ) , uma cadeira era arrastada e o baixinho corpulento me fazia sentar a uma meia dúzia de passos do entrevistado . Íamos começar a mais estranha entrevista da curta história de Realidade . E precisava ter certeza de que o entrevistado era , realmente , o entrevistado . Comecei a perguntar uma porção de coisas ao mesmo tempo . Do sofá , avoz veio calma :
- Queria lhe fazer uma proposta : que tal tomarmos um café , descansamos meia hora ( o senhor viajou tanto . . . ) e voltarmos a conversar logo mais ?
A voz do homem era a voz de Luís Carlos Prestes . Podiam ter mudado o seu rosto ( depois tive a certeza de que mudaram ) ; os últimos quatro anos de vida ilegal talvez tivessem até mudado seu jeito de pensar . Mas uma coisa , naquele instante , ficou clara : ainda não haviam trocado a voz de Prestes . O homem da saleta era o secretário-geral do PCB , o mais antigo e o mais forte dos grupos esquerdistas do Brasil .
À sugestão de Prestes , tomarmos café , seguiu - se o desaparecimento do homem baixo e forte Até que ele voltasse , uns cinco minutos depois , o silêncio foi total . Ou a casa tinha revestimento antirruído ou estávamos em algum bairro residencial ( Rio , São Paulo , Belo Horizonte , eu não sei ) , ou -ainda - em alguma pequena cidade , quem sabe numa fazenda . Naqueles cinco minutos - a sala não tinha relógio e eu , muitas horas antes , deixara o meu em casa , obedecendo ao acordo que fizera - , Prestes , quase imóvel , lia um livro , enquanto eu punha um filme colorido na máquina russa que levara , na tentativa de impressionar o entrevistado e seus amigos . Ao mesmo tempo , pensava no que perguntar primeiro àquele homem de setenta anos , o mais famoso dos comunistas das Américas ( sem contar os cubanos ) , cuja vida era conhecida , pelo menos para os que vivem atrás de todas as cortinas (de ferro ou de bambu ) , graças ao livro de Jorge Amado , O Cavaleiro Da Esperança , traduzido em dezenas de línguas , com milhões e milhões de exemplares vendidos. Prestes me diria , depois , que o livro de Jorge Amado não contém inverdades , mas é muito romanceado .
Quando o café chegou , em xícaras grandes , Prestes deu apenas três ou quatro goles , lá no sofá .
Nem de dia , nem de noite
Àquela altura , já estava desconfiado de que não me deixariam chegar perto do chefe do comunismo no Brasil . Assim , enquanto tentava organizar minhas perguntas , observava o homem da saleta : dera seus goles no café e voltara à leitura . A luz que vinha da lâmpada da cozinha nem me permitia saber , ainda , se era dia ou noite . Enquanto recolhia a minha xícara , o homem de sotaque nordestino fez um sinal para que o seguisse ; fomos para a cozinha , onde uma lâmpada fraca mostrava um fogão , geladeira velha , armário e uma poltrona de couro . No lugar da janela , um cobertor grosso deixava passar a luz do sol . O olhar do homem - tinha um rosto magro , apesar da corpulência - era uma indicação : deveria aproveitar a poltrona . Ali fiquei a meia hora que Luís Carlos Prestes achou que eu precisava . Estava quase cochilando , quando o leve cotucão me fez levantar e voltar para a sala , ao lado dos meus papéis , longe de Prestes . Este não tinha mais o livro , olha me como a dizer que comigo estava a palavra . . .
-Gostaria que o senhor me dissesse como está , hoje , o Partido Comunista .
Aquele homem velho - no PC , Prestes era chamado de "O Velho" - ficou um instante calado , depois apontou para um pacote de razoável tamanho , na poltrona ao seu lado .
- Aqui o senhor tem uma coleção dos últimos documentos do nosso Partido e também uma coleção da Voz Operária , órgão oficial do PCB . Sobre política , não vou lhe dizer nada , em caráter pessoal . Minha posição é a posição do meu Partido , claramente exposta no material que o senhor vai levar consigo . Agora , se me dá licença , queria lhe dizer porque estamos aqui , porque concordei em conversar consigo , deixando claro que o senhor pode me perguntar o que quiser sobre o que quiser . Só não responderei se achar que os nossos documentos já falam por si e que , portanto , o que neles está escrito responde a pergunta . O senhor sabe . . .
Prestes fala baixo , quase sem sotaque de gaúcho , que às vezes aparece apenas so ch , um pouco chiado .
- Pessoalmente , achava ser inútil qualquer entrevista , com qualquer jornalista . Mas o Comitê Central resolveu que devia receber um repórter de um grande órgão de imprensa . E aqui estamos . Não temos como impedir que o senhor resolva mudar o que conversamos . Mas para o País , como um todo , interessa saber o que pensa e está fasendo o Partido Comunista Brasileiro . Os companheiros de Partido com quem discuti o assunto são de opinião que , mesmo para a direita mais radical , é interessante conhecer a posição verdadeira dos comunistas . É por isso que o trouxemos até aqui .
De repente uma visita
Em fins de agosto , o jornal carioca Última Hora publicou uma nota em que afirmava que Realidade estava preparando uma reportagem sobre o PCB . Era verdade . Como é verdade que há mais de um ano - onde quer que estivessem - os repórteres da revista tinham uma recomendação : espalhar que estávamos interessados em entrevistar Luís Carlos Prestes .
Alguns dias depois danota publicada no Rio , a campainha do meu apartamento , em São Paulo , tocou pelas 10 da noite :
- Gostaria de conversar com o senhor , é coisa de interesse da sua revista .
Antes que pudesse dizer ao jovem de rosto inexpressivo que me procurasse na redação , ele acrescentou :
- Se Realidade quer mesmo escrever sobre o Partido Comunista , acho que o senhor precisa me ouvir .
Fiz o jovem entrar e - mentindo - adiantei que a matéria já estava pronta , que era um apanhado da história e dos objetivos atuais dos comunistas brasileiros .
A voz do jovem era impessoal , seu rosto tinha uma barba rala , de alguns dias .
- O que posso lhe oferecer são todos os documentos mais recentes publicados pelo Partido . E o faço apenas para que Realidade não publique inverdades a respeito do Partido , o que , me parece , não é jornalismo sério .
Resolvi blefar :
- Já temos os documentos . Vamos apenas resumi - los e trancrevê - los . Agora , se há parte dos comunistas uma verdadeira vontade de não esconder o que pensam , diga a eles que o que queremos mesmo é entrevistar Luís Carlos Prestes , onde quer que ele esteja . Até na Rússia .
O moço perguntou então se tínhamos as resoluções do sexto congresso do PC , se conhecíamos o estatuto do Partido , se havíamos lido o jornal Voz Operária .
O meu sim ainda era blefe .
- E o que o senhor acha ?
- Não concordo . Luta armada , guerrilha no campo ou terrorismo urbano são crimes contra o Brasil .
O rapaz me interrompeu :
- Queria lhe dizer duas coisas : um : em tese , concordo consigo ; dois : essa colocação política não é a do Partido .
- Meu amigo - continuei - , temos arquivados diversos panfletos que pregam extamente isso que acabo de lhe dizer .
- E os senhores vão publicá -los como documentos do partido ?
- Claro ! A não ser que tenhamos prova de que não são do PCB . A não ser que o próprio Luís Carlos Prestes nos diga o contrário .
O jovem perguntou como me encontrar nos próximos dias e foi - se embora .
A " Operação Pena Boto "
Uma semana depois , quem me procurou foi um cidadão de uns 35 anos , risonho , rosto redondo , bem vestido e simpático . Parecia o encarregado de "relações públicas" de uma grande empresa . Era hábil e direto :
- Tenho uma proposta que deve interessá - lo : o senhor pode deixar São Paulo por uns dias para fazer uma entrevista ?
- Depende de quem vou entrevistar - respondi .
- É uma boa entrevista , acho que o senhor sabe do que estou falando . Digamos que é o Almirante Pena Boto . Se estiver de acordo , podemos nos encontrar amanhã cedo , às 6 horas , na calçada do seu prédio . Leve máquina fitográfica , papel , máquina de escrever . Só queremos do senhor o compromisso eede não contar a ninguém o que vai fazer , deixar o relógio em casa e seguir nossas instruções .
Estávamos na noite de 18de setembro . Na manhã seguinte , ainda meio no escuro , desci para a rua , sem máquina de escrever , e vi alguém na esquina . Caminhei para lá ; era o homem de algumas horas antes , que me segurou por um braço e , - depois de "bom dia" de quem tinha dormido dez horas - disse :
- Vá andando em frente , sem olhar para os lados .
Assim fiz , até que um Volkswagen parou do nosso lado . A ordem veio tranquila , mas seca :
- Agora entre , feche os olhos e sente , sem deitar de lado , como se estivesse bêbado ou doente . A primeira etapa do nosso caminho é curta .
O perigo é a polícia
Brasileiro que tem menos de quarenta anos e , de algum modo , conviveu com os comunistas ou anticomunistas sabe que Luís Carlos Prestes não é o senhor Prestes . Luís Carlos Prestes pede adjetivos fortes antes do seu nome : é camarada , burocrata , cavaleiro da esperança , stalinista , revisionista , herói do povo ou carreirista ( afinal , desde 1945 Prestes é o "dono" do PCB ) .
Mas chamei - o mesmo de senhor .
- O senhor acha que o PC vai bem ?
Preste respondeu com segurança , embora dê a impressão de que pensa muito no que vaio dizer .
- Tivemos uma grande derrota em abril de 1964 . Mas uma derrota não significa perder a guerra . Cometemos erros , está claro , mas só não erra quem não age . Posso lhe dizer o seguinte ; o nosso Partido está organizado , hoje , nacionalmente . Somos o único Partido que escapou ao golpe militar de 1964 .
- E quantos adeptos tem o Partido Comunista , onde estão atuando ?
- O Partido Comunista Brasileiro tem 46 anos . Nesse tempo todo , cometemos erros e ecertos . Em relação aos acertos , aprendemos que a segurança ( para os comunistas , "seguarança" é a capacidade de escapar da polícia ) é fundamental . Em 1958 , quando pude voltar à legalidade , depois de onze anos , todo jornalisa que me entrevistava queria saber como fora a minha vida clandestina . Então , como agora , não vou contar . São segredos do Partido . Não vou dizer quantos somos , nem onde estamos , Só posso afirmar que hoje , apesar da derrota de 1964 , o Partido Comunista Brasileiro está de novo organizado , e que esta organização - apesar da repressão policial - aumenta e se consolida . ( Em 1945 , eles eram 200 mil ; hoje , pode - se pensar em uns 20 mil membros ativos , dentro do PCB . )
O que eu vivera mas últimas trinta ou quarenta horas mostrava que , pelo menos como organização formal , aquela gente era eficiente . Depois do Volkswagen onde onde entrei de olhos fechados , quase de madrugada , acabeo - uns quarenta minutos depois - numa casa , aparentemente nos arredores de São Paulo , onde o "relações-públicas" me pôs num quarto pequeno e sem janelas , deu - me jornais e uma garrafa de água mineral , enquanto trancava a porta e avisava que não sabia ebem quando continuaríamos viagem . Espiei os jornais , fumei muito , bebi a água e cabei dormindo . Acho que dormi bastante . Quem me acordou - estava escuro no quartinho - foi o homem de cachecol , chapéu e isqueiro a gás . Ele me du um copo de leite frio , pão com manteiga , um café e uma ordem interrogativa :
- Vamos ?
A cegueira , por escolha
Saí do quarto sem janelas , de olhos vendados . O cidadão de cachecol - muito gentilmente - disse - me que a venda era uma arma não contra mim , mas sim contra quem pudesse obrigar - me a falar . Ainda delicadamente , o homem apertou um pano preto , enrolado diversas vezes sobre meu rosto , levando - me até um carro ( estou certo de que era um Aero - Willys ) , pedindo - me - antes de me livrar do pano preto - que fingisse dormir . Era dia claro , de sol , e , depois de algumas voltas , o automóvel entrou numa estrada asfaltada . A viagem durou de cinco a sete horas , é difícil precisar . Ficar de olhos fechados durante tanto tempo é de um desconforto doloroso . . Tão diferente se torna a relação entre a gente e o mundo , que meu " anjo da guarda " ( de cachecol ) pegou minha mão e colocou - a na alça do Aero , pois cada curva eu perdia o equilíbrio . Naquelas horas , com grandes intervalos , conversamos sobre jornais e revistas , , sobre cinema e televisão . A velocidade era grande e , numa das vezes em que não consegui ficar de olhos fechados , vi que a estrada era de pista simples . Quando o carro parou e me disseram para abrir os olhos , já era quase noite , estávamos num acostamento . No banco da frente estavam duas pessoas , que já percebera horas antes . Não sei porque me pareceu que a estrada era São Paulo - Belo Horizonte . Foi só ali , procurando algum ponto de referência , que ouvi a voz do acompanhante do motorista , falando sem olhar para mim .
- Vamos lhe pedir mais um sacrifício : daqui a pouco , paramos , descansamos , sempre dentro da nossa combinação . De acordo ?
- De acordo - respondi .
- Então , deixe o companheiro lhe vendar de novo os olhos .
Um homem só
- Queria saber como seria a revolução comunista no Brasil .
O homem sentada no sofá , naquela casa não sei onde , não foge da conversa , tem prazer em defender seus ponto de vista . Prestes gosta de falar :
- Não sabemos como vai ser a revolução brasileira , nem temos uma proposta de como fazer a nossa revolução . Vou exploicar melhor : o PC espanahol , por exemplo , há cinco anos , diz que a greve geral é um caminho possível , embora não seja o único , para derrubar o governo de Franco . Nós , comunistas brasileiros , não chegamos ainda a esse tipo de colocação política . ( Prestes fala sempre "nós" , desde que se trate de questão política ou ideológica . )
- E a vida ilegal ?
- Desculpe , mas lhe disse que não posso falar sobre isso . Agora , estou lendo o livro de Dom Hélder Câmara . . .
- Mas ouvi dizer que o senhor pode sair do Brasil com licença do Governo . . .
- Em fevereiro deste ano , estive em Budapeste , na Hungria , representando o Partido nun congresso internacional . Como saí e como voltei , o Governo não ficou sabendo , e é evidente que não posso lhe contar como tudo aconteceu . Mas que estive na Europa não é novidade : alguns jornais brasileiros noticiaram o fato , trancreveram um resumo de minhas declarações , que no mundo comunista tiveram ampla repercussão .
Prestes tem muitso filhos , ensaio uma pergunta nesse sentido .
- Minha vida particular é o de menos . Ninguém pode lhe proibir de procurar minha mulher e meus filhos . Eles vivem em São Paulo e procurá - los ou não é decisão sua . . Só quero que lembre , desculpe , que não estou aqui como pai de família . Estou falando como secretário - geral do Partido Comunista Brasileiro .
Enquanto fala , o seu tom de voz nunca se altera , as mãos de POrestes descansam sobre as pernas . De repente , aquele homem de setenta anos levanta a mão direita , une os dedos e pergunta :
- O senhor sabe ? Eu não conheço meu último filho .
Apesar do gesto , a frase não é uma queixa , simplesmente encerra o assunto .
Um santo na parede
- E o que o senhor acha dos padres e bispos brasileiros acusados de serem esquerdistas ?
- Se o próprio Papa reconhece que o capitaliosmo não é a saída para os povos subdesenvolvidos , uma vez que aumenta cada vez mais a distância que os separa dos países ricos , não fico surpreso com nosso clero progressista . . Nós , os comunistas , apoiamos a luta de todos que desejam um futuro melhor para o Brasil . Estamos prontos , portanto , a apoiaresse setor da Igreja Católica , mesmo porque não nos consideramos os donos únicos da verdade , embora tenhamos algumas posições bem claras a respeito de como deveria ser um novo Governo no Brasil . O poder político precisa estar interessado realmente no futuro do País . E tal governo , por uma questão de coerência , deve contar com a presença da classe operária , a classe que produz as riquezas . Isso tudo não significa que pretendemos um Governo socialista para já . Só que pode pensar em construir o socialismo quando o ploletariado ganha a loiderança , a hegemonia dentro do Governo . Não sei se os padres que defendem posições mais avançadas pensam assim .
Prestes faz uma pausa , enquanto eu me lembrava dos santos na parede da " fazenda " .
Depois que o Aero - Willys parou no acostamento e me disseram que íamos descansar um pouco , logo mais , pedindo que de novo deixasse que me pusessem o pano preto no rosto , rodamos mais uns poucos minutos pelo asfalto , dobramos à esquerda numa estrada de terra e - uns sessenta minutos depois - paramos . A lanterna reapareceu , acesa no meu rosto , e me ajudaram a entrar numa casa . Lá dentro pude abrir os olhos : era uma velha mas bem conservada casa de fazenda ( pelos menos parecia uma casa assim ) , com cômodos bem grandes . Estive na sala - onde a " Santa Ceia " ficava por cima de uma mesa de jantar - e num dos quartos , onde - depois de comer um prato de arroz , feijão e carne - fiquei tentando espiar pelas frestas da janela , trancada por dentro com um cadeado sob olhar de um " Santo Antônio , Menino Jesus ao colo " , dependurado na parede . A seguir deitei - me e dormi , até que o homem do cachecol me chamou para tomarmos a perua fechada que nos levaria até Prestes . Não sei quanto dormi , mas ao sair da casa vi que ainda era noite .
- Como o senhor definiria os padres de esquerda ?
- Como patriotas , a quem respeito .
Percebo que Luís Carlos Prestes se relaxa e está sorrindo :
- O Marcechal Lott , tão anticomunista e tão católico , deve estar perturbado com as novas posições da Igreja . . .
- Os senhores continuam achando que o apoio dos comunistas a Lott , contra Jânio , na eleição de 1960 , foi correto ?
- Sim . E a própria renúncia de Jânio , que deu início a tudo isso que aí está , prova o nosso acerto político . Mas Lott era um candidato muito difícil , pelas suas posições sectárias , de um anticomunismo primário . Mas , como era e é um patriota , o Partido lutou para elegê - lo . ( os homens da ex - UDN que apoiaram Jânio então uma acusação contra os extintos PSD e PTB : haviam " comprado " , com dinheiro , o PCB ) .
- E o apoio a Juscelino ? Os comunistas votaram nele ?
- Também, então, quando trabalhamos por Juscelino, a sua candidatura era a melhor. Depois, durante o seu governo, não deixamos de denunciar a penetração imperialista por ele favorecida e estimulada.
O homem baixo e nordestino interrompeu a entrevista para avisar que a refeição estava pronta e convidou-me a acompanhá-lo até à cozinha. Lá, sentado na poltrona velha encontrei o rosto risonho do cidadão que dera início àquilo tudo. Era o "relações-públicas":
- Como é, mestre, tudo bem? Que tal lhe parece o "velho"?
- Que não parece nada velho- respondi.
Depois, perguntei como poderia fotografar Prestes, se nem seu rosto me deixavam ver direito.
Um retrato, de perfil
- Você pode fotografar, mas só de perfil e com uma condição: deixar o filme com a gente, pois não podemos correr o risco de a sua revista publicar uma foto que nos obrigaria a tomar mais cuidado ainda para proteger o "velho". Acho que já ficou claro que o rosto de Prestes está diferente. Sabe, tem gente que o conheceu bem, antes de 1964, e que cruzando com ele, por acaso, não o reconheceu. Voltando à fotografia: mandamos revelar o seu filme e fazemos chegar a você os negativos que não mostrem direito o rosto do homem.
Concordei, não tinha saída. Em seguida, disse-lhe que naquela escuridão era impossível usar o filme colorido que tinha na máquina.
- Você trouxe filme normal, não colorido?
- Sim.
- Então, por favor, fotografe com filme normal. Nós não temos, com certeza, possibilidades de revelar filme colorido.
Depois do almoço, na cozinha, consegui convencer o homem de que, mesmo operando um filme sensível, não poderia fazer nada de bom na escuridão em que estávamos. Pedi que ele abrisse as cortinas da sala, disse que sabia que era dia, mostrando o cobertor na janela da cozinha, iluminado pelo sol. O homem prometeu discutir o assunto e me levou a um quarto pequeno, que dava para a sala, dizendo que ali ficasse.