A. Crimes Comuns e não Comuns
CRIME COMUM
Usualmente, o termo “crime comum” se utiliza para diferenciá‐lo de crime
político, mas esta definição é insuficiente. De fato, a idéia mais aceita é que um crime
comum é aquele que pode ser cometido por qualquer pessoa, sempre em função de
um proveito próprio. Esta definição precisa de alguns comentários.
Quando falamos de um criminoso ou delinqüente comum, este seria aquele
que rouba, assalta, mata, etc., ou para obter um lucro pessoal, ou para satisfazer uma
necessidade psicológica, que também seria um proveito pessoal. Por exemplo, um
sujeito ciumento pode bater no amante de sua esposa. Esse “ato de bater” é um crime
comum, porque, embora ele não tire um proveito econômico, com esse ato satisfaz
um sentimento de possessão, de vingança, de humilhação, etc.
Se excluirmos os crimes comuns com motivação puramente lucrativa (roubo,
assalto, estelionato, charlatanismo, etc.), outros crimes de direito público que também
são comuns (como lesões, homicídio, etc.) visam sempre uma espécie de satisfação ou
benefício, seja individual ou de grupo. Por exemplo, uma pessoa que compete em
rachas (pegas) de moto ou automóvel, está satisfazendo sentimentos obscuros de
agressão. O mesmo é o caso de vandalismo.
Mas é necessário ter cuidado: poderíamos acreditar que o policial que tortura
comete um crime comum, quando, em realidade, ele comete um crime contra a
humanidade. Então, duas características do crime comum são:
(1) Que tenha por objetivo um benefício pessoal;
(2) Que seja exercido por particulares, ou por alguém que atua como particular.
Por exemplo, um militar não é um particular, mas se ele rouba um banco está
atuando como particular e seu crime é comum. Se ele bombardeia um objetivo civil
(ou, ainda, um objetivo militar cujo ataque pode produzir dano colateral civil) seu
crime não é comum. É contra a humanidade.
Os crimes comuns admitem gradações. Assim fala‐se às vezes de crimes
hediondos, de crimes culposos, e assim em diante.
CRIME POLÍTICO
Crime político não é simplesmente um “crime cometido por políticos” ou por
“pessoas que se movem com interesses políticos”. Uma pessoa que atua na área
pública, como militar, policial, político, magistrado, etc., têm oportunidade de cometer
pessoalmente ou, em muitos outros casos, mandar cometer, crimes brutais de
repressão contra cidadãos, de tortura, de extermínio, etc.
Embora cometidos com uma finalidade política (por exemplo, se manter no
poder), esses crimes não podem ser justificados por esse motivo. Por exemplo, Brasil
recebeu como refugiado e depois negou extradição ao ditador paraguaio Alfredo
Stroessner. Alguns justificaram esse refúgio dizendo que seus crimes eram políticos!
Na verdade, os crimes dele e muitos outros eram crimes contra a humanidade
ou, também, de lesa humanidade.
O crime político é um ato praticado por uma pessoa ou um grupo de pessoas
contra um governo por considerar opressor o sistema estabelecido (que se qualifica76
como crime porque o estado no qual se realiza o coloca fora da lei), com os seguintes
atributos:
(1) Seu objetivo é modificar uma situação política considerada injusta por
quem o executa.
(2) Não pode conter violações dos Direitos Humanos (DH).
(3) Não está destinado a satisfazer, de maneira prioritária, interesses pessoais
dos executores ou mandantes.
Originalmente, DH são aqueles essenciais à condição humana, como o direito
de não ser preso sem motivo, não ser torturado, executado, etc. É parte da definição
de DH que a violação de um direito humano básico supõe o exercício de alguma
forma de poder. Com efeito, um crime cometido por alguém que têm o poder, elimina
a possibilidade de defesa da vítima, torna o crime massivo ou serial, e destrói a
legitimidade do sistema jurídico que deveria preveni‐lo ou puni‐lo.
Então, quem viola os direitos humanos é o estado, ou uma corporação que atua
paralelamente ao estado, e que possui um poder, mesmo clandestino, numa certa
seção territorial. Por exemplo, os crimes cometidos pela máfia na Sicília são, em sua
maioria, violações de DH, embora a máfia não detenha oficialmente o poder.
Para um crime ser chamado político é necessário, além do desejo de modificar
uma situação considerada injusta, que não se cometam atos cruéis. Supõe‐se que
defender um grupo de pessoas de um exército torturador, matando um oficial do
mesmo, é crime político e não comum. Alguém diria que os militantes franceses que
resistiram ao nazismo, e colocaram bombas em delegacias ocupadas pela SS eram
criminosos comuns ou terroristas?
Existe uma propaganda de que “crime político” se aplica só a esquerda, e é um
conceito inventado pelos marxistas para não serem punidos. Absurdo! O crime
cometido por Hitler quando deflagrou o putsch da cervejaria em Munique era, sim,
político, mesmo que muitas vezes nos recusemos a admitir. Já o crime que Hitler
cometeu ao invadir Polônia foi crime contra a humanidade. Quem defende os DH não
nega que um fascista possa cometer um crime político, e que deva ser protegido como
qualquer outro.
O chamado crime político não persegue um benefício pessoal direto, mas uma
satisfação ética, consistente em realizar uma ação que acredita justa e que deve
melhorar a sociedade. O crime político é uma ação proibida, deslegitimada,
criminalizada pelos que exercem o poder numa sociedade, contra os que querem
enfraquecer o destruir esse poder, por crenças humanitárias, filosóficas, religiosas, ou
o que seja. Mas, além disso, para o crime ser político é necessário que sua execução
não desrespeite os DH, entendidos como Direitos Naturais. Por exemplo, o Irish
Republican Army (IRA) da Irlanda cometeu numerosos crimes políticos, mas também
outros que não podem ser tratados como tais, porque violavam direitos básicos das
pessoas; um caso desses foi a colocação de bombas em estádios de futebol de Belfast
freqüentados por britânicos.
Os crimes com motivações políticas, quando produzem danos aos DH, podem
ser comuns, como o assassinato não defensivo de um inimigo político, ou crimes
contra a humanidade, que podem ir desde a explosão de uma escola, até aplicação de
tortura e genocídio. Por exemplo, Tiradentes era, para o modelo da sociedade colonial,
um criminoso político. Já Bin Laden, para qualquer modelo de sociedade humanitária,
é um criminoso de lesa humanidade. Jesse James era um criminoso comum, nem
político nem anti‐humanitário.
Existe uma antiga tradição sobre crimes políticos, mas eles foram claramente
diferenciados dos outros, apenas no século 20. Por sua vez, os crimes de lesa
humanidade foram tipificados a partir de Nuremberg, e encontram abundante
descrição em diversos documentos de Organizações Internacionais.
Como qualquer outro conceito social, o crime político pode ter zonas de
incerteza na sua definição, mas não é um conceito relativo. Um fascista que participa
de uma passeata, é perseguido pela polícia de um governo liberal e reage, está
cometendo um crime político, e não comum, mesmo que, para nossos padrões, o
fascismo seja uma ideologia negativa e deva ser combatida. Um militante que delata
um colega a uma autoridade fascista não comete um crime político, mas um crime
contra a humanidade em escala não massiva. (É um crime contra os direitos humanos.)
Escapar de um campo nazista matando um guarda é um crime terrível para os
algozes, mas não é crime para a pessoa que salva assim sua vida de uma estrutura
perversa.
É verdade que a transição entre um crime político e um crime comum pode ser
tênue, mas a maneira de aproximar‐se de uma definição mais apurada não é acumular
opiniões de centenas de autores, mas ter em conta o sentido humano da ação. Talvez
uma das observações mais profundas feitas durante a Quinta Feira 9 de setembro de
2009, durante a primeira seção do julgamento a Cesare Battisti, foi a do defensor Luís
Roberto Barroso, quando advertiu a alguns ministros estarem esquecendo o aspecto
humanitário do julgamento!
CRIME CONTRA A HUMANIDADE
O conceito de crime contra a Humanidade ou crime de lesa Humanidade foi
cunhado depois da Segunda Guerra, quando a opinião pública se horrorizou das
atrocidades cometidas pelos nazistas. Mas sempre houve crimes contra a humanidade.
Qualquer guerra que não seja estritamente defensiva e que não possa ser
evitada (inclusive com sacrifício de alguns direitos, como espaço territorial) é um crime
de lesa humanidade. Isto poucas vezes é manifestado, porque implica reconhecer que
as forças militares cometem crimes de lesa humanidade. Bom, em alguns casos pode
não ser assim, mas isto é exceção e não regra.
Um crime contra a humanidade é aquele que reflete ódio pela espécie humana
ou parte dela e interesse por prejudicá‐la. Não importa que esteja enfeitado por
termos como patriotismo, coragem, fé em Deus e outras coisas. Exemplos desses
crimes são o genocídio, o etnocídio, os massacres, a discriminação, etc. Estes são
crimes massivos.
Observe que a tortura geralmente é serial e não massiva. Mesmo assim, ela
tem como finalidade principal (ou como conseqüência) produzir sofrimento, e é,
portanto, também um crime contra a humanidade. Já o caso da morte é mais
complicado. Hoje em dia é uma aberração pensar que a pena de morte tem
justificativa, mas podem existir motivos para matar, que não seja da maneira fria e
cruel de uma execução. Por exemplo, uma pessoa que mata para defender‐se de outra
que tomou a iniciativa de atacá‐la e que pode matá‐la se não for neutralizada.
Mas se apresentam casos complexos. Às vezes, matar um tirano, ou alguém
que serve a ele, ou a membros de uma tropa que serve a uma tirania sangrenta, pode
ser interpretado como uma forma não imediata de autodefesa. De fato, os liberais do
século 18, alguns dos quais eram inimigos da pena de morte, aceitavam o tiranicídio. É
por isso que a morte de um tirano ou de um torturador pode ser considerada crime
político. Sobretudo, se não houver outra forma de render esta pessoa.
A pena de morte é uma forma de vingança social. A neutralização de alguém
em plena atividade pode não ser. É necessário estudar caso por caso, mesmo que a lei
deva ser universal.
Aliás, o crime de lesa humanidade é praticado por quem tem poder. Se um
particular qualquer tortura ao seu vizinho, ele é um criminoso comum, que deve
receber o tratamento justo (prisão ou reeducação ou tratamento psiquiátrico), mas
não é um criminoso contra a humanidade, porque ele não possui um poder que possa
ser estendido de maneira serial ou massiva.
Entre os crimes que, sem dúvida, são de lesa humanidade, se encontram pelo
menos, os seguintes:
�� Produção de Tormentos
Aplicação de tortura sistemática por agentes públicos ou seus equivalentes
privados (jagunços, seguranças, capangas, etc.). Não deve ser confundido
com “brutalidade policial”. Esta é o exercício exagerado de força ou violência
num ato de contenção, e pode ser produto do treinamento selvagem, mais
que uma mentalidade sádica.
�� Crimes contra a Paz
São crimes que consistem em acabar com a paz entre grupos humanos, por
exemplo, a violação do tratado de Briand‐Kellog depois da Primeira Guerra
Mundial, redigido para evitar novas guerras. Obviamente, estes crimes só
podem ser cometidos por quem possui poder para provocar uma guerra.
�� Crimes de Guerra
São as grandes violações aos DH durante as guerras: tortura de prisioneiros,
concentração em campos, matanças, genocídios, uso de armas ditas “cruéis”
(como granadas de fragmentação, gases venenosos, napalm, etc. )
�� Terrorismo de Estado
Ações terroristas por parte do Estado. Observe que o terrorismo privado, não
exercido pelo estado, pode ser também um crime contra a humanidade e
não um crime comum, dependendo de suas dimensões, objetivos, etc.
�� Crimes contra os princípios das Nações Unidas
No Brasil, a lei 9474/97 sobre Refugiados, artigo 3º, IV, considera
inaceitáveis para refúgio, os que “sejam considerados culpados de atos
contrários aos fins e princípios das Nações Unidas”.
No relatório contra Battisti, o relator se refere de maneira incompreensível a
este assunto, mostrando que não tem idéia do que significa.
Atos contra os princípios da ONU são aqueles que contribuem a diminuir ou
prejudicar a paz e convívio entre povos, etnias, nações, etc. e/ou abalar a dignidade de
grupos sociais. Portanto, os crimes contra humanidade seriam todos eles crimes contra
as Nações Unidas, mas no texto da lei se refere a atos mais específicos como racismo,
sexismo, propaganda da guerra, genocídio, etnocídio, democídio, etc.
TERRORISMO
Os organismos internacionais não têm ainda uma definição oficial de
terrorismo. O Conselho de Segurança das Nações Unidas propôs uma definição
bastante razoável, mas foi rejeitada por governos que desejam chamar terroristas
àqueles que incomodam seus projetos, e preferem que não exista uma definição
oficial. Esta foi formulada num relatório do Conselho, emitido em 11/2004:
Ato Terrorista − Qualquer ato que tenda a produzir a morte ou ferir gravemente civis
não combatentes, com o propósito de intimidar uma população, obrigar a um governo
ou organização internacional a fazer ou deixar de fazer algo.
Esta explicitação faz parte do relatório do Conselho, mas não possui valor legal.
Alguns países percebem que, definindo terrorismo dessa maneira, a violência em
defesa própria não poderia ser chamada terrorista, sendo então menos viável rotular
assim a todos os que se defendem de invasão, genocídio ou exploração.81
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um pedido de extradição do
governo argentino em 04/10/89, com o relato de SEPÚLVEDA PERTENCE, e rejeitou o
pedido por unanimidade. Nesse contexto, caracterizou o que deve ser excluído da
qualificação de “terrorista”. Transcrevo a parte 5 do acórdão:
5. Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem
utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a
população civil.
Esta é a primeira jurisprudência nas Américas que permite uma caracterização
limitativa de terrorismo. Para ser terrorista, um ato precisa, pelo menos, que os atores
usem armas de perigo comum (como explosivos ou tiroteio indiscriminado) e gerem
riscos generalizados à população civil.
Observe, entretanto, que mesmo um ato sendo terrorista (em sentido privado),
ele pode não ser um crime de lesa humanidade. Todo ato de terrorismo de estado é
crime contra a humanidade, mas nem todo ato de terrorismo privado é. Por exemplo,
um sujeito que coloca uma bomba numa delegacia e mata vários policiais de maneira
indiscriminada comete sim um ato de terrorismo, mas pode ser um ato isolado e não
constituir crime de lesa humanidade. Para qualificar o terrorismo de crime contra a
humanidade é necessário ter em conta vários fatores: impacto, objetivos,
planejamento, serialidade, etc.
Outro ponto importante: o terrorismo, quando não é crime contra a
humanidade, é crime comum, como no exemplo acima. Mas nunca é um crime
político. Nesse sentido, a lei 9474 está certa ao não oferecer refúgio a terroristas.
Observe‐se que no começo do caso Battisti no Brasil, o refugiado foi qualificado
pela mídia como terrorista, como maneira de criar animosidade contra ele e para jogar
lenha na fogueira de seu julgamento. Aos poucos, os jornais considerados mais sérios
foram modificando essa imagem. A Folha de S. Paulo passou a chamar‐lo ex‐terrorista
e, depois ex‐ativista.
B. O CONARE e o Ministro de Justiça
No Brasil, o Conselho Nacional para os Refugiados (CONARE) é uma
dependência do Ministério da Justiça, cuja missão consiste em analisar os pedidos de
refúgio, deferi‐los ou indeferi‐los, auxiliar os refugiados, e assuntos conexos.
É presidido por um representante do Ministério de Justiça e se forma com
representantes de vários ministérios, da Polícia Federal, da ONG católica Cáritas, e do
Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Entretanto, o
representante do ACNUR, que é o único organismo universal especializado em
refugiados, possui apenas direito a voz, porém não a voto.
O CONARE está regulado pela lei 9.474/97, que estabelece sua subordinação
direta ao Ministro da Justiça. Suas decisões podem ser revistas mediante recurso ao
próprio ministro. Esta subordinação é perfeitamente regular, pois a Conselho atua
como uma primeira instância, cujos pareceres devem ser interpretados como
informativos e não necessariamente como obrigatórios.
Depois que Battisti foi detido, ele pediu para ser aceito como refugiado, e o
CONARE indeferiu. Votou contra a concessão do refúgio a representante do Ministério
de Relações Exteriores, que confessou que desejava agradar o governo italiano.
Também, obviamente, a Polícia Federal se manifestou contra a admissão de Battisti
como refugiado.
Finalmente, o placar ficou em 3 contra e 2 a favor. Foi nesse momento que
Battisti entrou com recurso ao Ministro da Justiça Tarso Genro, fazendo uso dos
direitos dados pela lei. O ministro lhe concedeu o caráter de refugiado, numa decisão
que até o mesmo relator do STF qualificou de “claríssima”, mostrando certo
desconforto, pois uma decisão clara é mais difícil de refutar que uma obscura.
Genro usa como argumento o artigo 1º, I, da lei 9474 onde se admite o refúgio
para pessoas que tem fundado temor de perseguição. Para tanto, o ministro descreve
de maneira sóbria e precisa a situação de Itália durante a Estratégia de Tensão.
Entretanto, deve compreender‐se que a condição de político obriga a certa etiqueta, e
não permite a liberdade que tem um particular. Digo isto, porque ele manteve sua
descrição da repressão italiana, um pouco aquém do real. Além disso, evita dizer que
condições de terrorismo de estado ainda existem, embora sejam dirigidas contra
outros alvos, como ciganos, albaneses, africanos, e imigrantes em geral, incluindo
brasileiros.
O Anuário de 2009 de Anistia Internacional, que tomaria muito espaço citar
neste resumo (mas o leitor encontra na Internet), menciona claramente algumas
formas de repressão e perseguição que existem na Itália, embora sejam menores que
as das décadas de 70 e 80.
Apesar de que a decisão de Genro era absolutamente legal, impecável, justa e
fundamentada, produziu uma reação agressiva em diversos meios.
O Presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF), numa decisão
insólita, permitiu que essa Corte tivesse intervenção no caso Battisti, criando um
gravíssimo precedente de conflito de poderes. Se isto não for revertido, pode
significar o fim do refúgio no Brasil e de países que adotem sua jurisprudência.
O STF tem competência, pelo artigo 102 da Constituição Federal de julgar
extradição, mas não refúgio, e ambos não são a mesma coisa. A reversão necessária
não é apenas a rejeição do pedido de extradição. A própria Corte deve declarar todo
este processo prejudicado e inexistente.
C. Refúgio e Asilo
Os dois típicos mecanismos de proteção de pessoas que são objeto de
perseguição (não necessariamente política, pudendo ser religiosa, racial, sexista, de
opinião, ou de qualquer outra índole) são o refúgio e o asilo.
REFÚGIO EM SENTIDO CLÁSSICO
O refúgio é uma instituição proposta de maneira sistemática pela Convenção
de Genebra de 1951, como remédio transitório para os sofrimentos de milhões de
pessoas que tinham sido deslocadas, na Europa, pela Segunda Guerra Mundial. Nos
anos 60, vários protocolos tiraram desta Convenção seus aspectos europeístas: agora,
ela poderia ser aplicada a cidadãos de qualquer país, residentes em qualquer lugar, e
cujos problemas tivessem começado em qualquer data. Não se restringia a europeus,
nem perseguidos da Segunda Guerra.
Atualmente, o refúgio está caracterizado por:
1. Ser uma proteção que organismos internacionais (notadamente, o Alto
Comissariado da ONU, o ACNUR) outorgam a grupos de pessoas, de qualquer
tamanho, que se encontram em risco por perseguições com base em etnia, raça, cor,
religião, opinião política, gênero, ou qualquer outra forma de diversidade.
2. O refúgio se concede, usualmente, numa jurisdição diferente à do local da
perseguição. Por exemplo, centenas de cidadãos do Uruguai, Chile e Argentina
receberam, do ACNUR, refúgio em território brasileiro.
3. O refúgio é concedido, em geral, porém não necessariamente, em forma
massiva, a um grupo que pertence a etnia, grupo social ou país designado (ou seja,
marcado como estando sob risco). Por exemplo, os Romã (ciganos) perseguidos na
Itália, não precisariam provar que são acusados de algum ato específico. Todo o
mundo sabe que sua própria condição os expõe a repressão.
4. A proteção dada pelo refúgio torna a pessoa candidata a ser derivado
legalmente para um país que o reconheça como imigrado com os direitos e deveres de
um cidadão normal, junto com sua família, quando sua condição estiver em risco. Ou
seja, passa de ser um refugiado sob mandato internacional, provisoriamente
assentado num território, a ser um refugiado reconhecido por um país, e sob o
mandato conjunto de órgãos internacionais e do governo nacional, com assentamento
estável, seja indefinidamente, seja até que a causa desapareça.
No entanto, nem sempre é necessário ser aceito pelo país dentro de cuja
jurisdição se constituiu o mandato de refúgio.
Então, em termos gerais (porque há casos mistos), o refúgio é uma medida de
proteção (a) Massiva ou Grupal; (b) Outorgada fora do local de perseguição; (c)
Baseada em Riscos Coletivos e Difusos; (d) Assumida por um país de maneira
definitiva, ou pela ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados)
em forma provisória, até encontrar um país hospedeiro ou até que o perigo tenha
desaparecido; (e) Estabelecida em Convenções Internacionais e diplomas legais que,
pelo menos semanticamente, devem ter valor prioritário às leis do país, ou
equivalentes aos mandamentos constitucionais.
O refúgio pode ser também individual, é óbvio, como o prescreve a lei de
Refugiados, 9474 no Brasil. Todos os casos anteriores de refúgio, mesmo os que não
foram polêmicos como o de Battisti (Falco, Lollo, Medina, etc.) foram individuais.
O Brasil, em 1960, foi o primeiro país da região que ratificou a Convenção de
1951, e primeiro a sancionar uma Lei Nacional de Refúgio, em 1997 e, em 1998, criou
o CONARE. Junto com a Venezuela, o Brasil foi um dos primeiros integrantes do
Comitê Executivo do ACNUR, que é composto pelos países que têm demonstrado o
maior grau de compromisso com a temática dos refugiados. Esta tradição em favor do
refúgio por parte do Brasil é coerente com a tradição pré‐jurídica do país como um
grande receptor de pessoas perseguidas ou marginalizadas em outras regiões do
planeta. Esta tendência à hospitalidade com os refugiados é, provavelmente, produto
da composição miscigenada e tolerante de nosso povo.
Observe que este tesouro de tradições pode ser perdido pela ação ilegal
de transferir ao judiciário a avaliação da condição de refúgio, que é típica
do executivo.
ASILO TERRITORIAL E DIPLOMÁTICO
Asilo é um termo pouco usado fora das Américas, apesar de que ele existe em
várias legislações européias, inclusive em Portugal, onde está regido pela lei 15/98. O
asilo é uma instituição que permite que uma pessoa seja protegida num país por
motivos de perseguição específica.
Quando se aplica em países europeus, ele aparece muitas vezes confundido
com refúgio, quase como se fossem sinônimos, salvo quando se concede a certas
celebridades políticas, para a qual a proteção aparece “personalizada”.
Nos Estados Unidos, país que concedeu maior quantidade de asilo ou refúgio
na época moderna, a diferença é a seguinte (literalmente):
Asilados: Indivíduos já fisicamente presentes nos EEUU podem solicitar asilo,
suposto que eles satisfazem a condição para refugiado e não estão impedidos por lei.
Refugiados: Um refugiado é uma pessoa que não pode ou não quer voltar a seu
país devido a um temor bem fundado de perseguição ou porque sua vida ou liberdade
estão ameaçadas. O aspirante deve estar fisicamente localizado fora dos Estados
Unidos.
Como se pode ver, as duas condições se superpõem: um asilado é alguém que
poderia ser refugiado. Mas, como a pessoa está dentro do país, recebe asilo territorial.
Já se o potencial refugiado qualifica para asilado, mas se encontra em outro país,
poderia pedir asilo diplomático, muito utilizado na América Latina.
Enfim: os dois institutos têm diferenças técnicas, mas o asilo poderia ser
considerado um subconceito do refúgio. Aliás, o refúgio é dado às vezes também em
alguns casos dentro do próprio país. É muito comum, que ACNUR refugie pessoas em
países africanos e as desloque para outros onde correm menos risco. Ambos são
ferramentas de proteção humanitária, mesmo que sejam usados às vezes com
propósitos de propaganda política.
Um asilado é um refugiado que, em vez de ser recebido como parte de um
grupo (por exemplo, os curdos perseguidos na Turquia) é recebido individualmente.
Por outro lado, no caso de refúgio há um medo fundado de perseguição, e no caso de
asilado há uma perseguição específica. Entretanto, a distância entre os dois casos
pode ser pouca: um cidadão africano que chega ao Brasil fugindo de um massacre na
Etiópia, pode ter fundado medo de ser morto em seu país de origem, e pede refúgio.
Já, por exemplo, o ex presidente do Uruguai Wilson Ferreira Aldunate foi perseguido7
pela ditadura de seu pais desde 1973 e pediu asilo na Argentina. Ele era uma caso de
perseguição específica, mas provavelmente não corria risco de morte.
A concessão de asilo político se encontra como um princípio da República
Federativa do Brasil em suas relações internacionais, segundo artigo 4º, inciso X, da
Constituição Federal. Ocorre quando alguém é perseguido por crimes de índole
política, de opinião, ou qualquer outro que não configure violação ao direito penal
comum.
Advirta‐se que esta definição difere pouco da definição de refugiado, dada pela
lei de refúgio.
O refúgio político e o asilo são apresentados às vezes como formas de proteção
antagônicas, que não podem aplicar‐se no mesmo caso. Esta visão do problema está
orientada por interesses políticos, já que alguns governos não cumprem seus
compromissos internacionais de refúgio e, por outro lado, reservam o asilo para
perseguidos célebres. Este foi o caso de Garcia Márquez, que recebeu asilo no México,
argumentando ser perseguido na Colômbia.
Em realidade, uma massa enorme de pessoas que são perseguidos globalmente
por razões políticas, raciais, religiosas ou nacionais, pode conter muitas pessoas que
precisem do asilo individualmente. Portanto, ambos os conceitos, apesar de suas
diferentes metodologias, podem ter a mesma utilidade e devem ser aplicados da
mesma maneira.
Na América Latina, muitas vezes os governos utilizam a fórmula de refúgio,
porém aplicada caso por caso, o que permite que a recepção de perseguidos seja
menos espetacular e gere menos tensão com o país perseguidor, do que aconteceria
quando se confere asilo.
Isto completa a explicação de por que refúgio e asilo podem ser confundidos, e
por que a acusação contra Tarso Genro de ter cometido uma infração ao outorgar asilo
“disfarçado” de refúgio, é produto da ignorância história e sociológica dos que
afirmam essa banalidade.
É interessante observar que a proteção ao autor de um crime comum não
aberrante, que está dissociado da atividade criminosa, mesmo que tenha praticado seu crime num país onde não existe trato desumano com os detentos, é uma atitude
humanitária, como foi aplicada pelo Brasil com Ronald Biggs. Vejamos o que
aconteceria no outro extremo:
Se Battisti fosse extraditado (um homem cujos crimes não foram comprovados,
e que, além disso, são de caráter político), seria enviado a um sistema prisional
desumano, pelo sistema político brasileiro, considerado “democrático”.
D. Causas de Refúgio e/ou Asilo
PERIGO DE MORTE
O perigo de morte é uma razão típica, expressa nos tratados internacionais, nas
leis nacionais, e presente em toda a prática do refúgio ou asilo, para conceder
proteção a um estrangeiro perseguido.
Battisti tem declarado várias vezes que tem medo por sua vida na Itália. Se
alguém duvida, proponho que faça este breve raciocínio: O governo italiano tem
promovido uma campanha internacional de proporções inusitadas. Não existe, em
toda a história das extradições, nem mesmo em caso de guerra, escândalos tão
grandes como os que Itália está promovendo. Vejamos alguns:
1. Políticos e diplomatas italianos se entrevistaram com membros do governo,
do congresso e, obviamente, do STF, um grande número de vezes. Confesso
que não consegui fazer uma conta completa, mas, encontrei nos jornais
mais de 30 registros desses encontros.
2. Itália não usou os canais normais, através do ministério de relações
exteriores, nem seguiu a etiqueta adequada para o pedido de extradição,
mas “pulou” para o STF, em aberto desafio ao governo.
3. Mesmo que um mandato de segurança possa ser impetrado por nacionais
ou estrangeiros, não existe a figura jurídica que permita a um governo
estrangeiro usar esse tipo de recurso.
4. Os políticos, magistrados e diplomatas italianos insultaram aos juristas
brasileiros, ofenderam a população, se expressaram com estilo machista,
sexista, discriminatório sobre nossas dançarinas, numa amostra de
grosseria e brutalidade que não se encontra em nenhuma manifestação
diplomática, nem do Terceiro Reich. (Sugiro a quem duvide disso, fornecer
um exemplo).
5. Nada ficou fora da alucinada investida contra Battisti: propuseram boicote a
um amistoso de futebol, boicote a produtos brasileiros, retirada temporária
do embaixador, boicote ao turismo, e até atos masoquistas como greves de
fome de senadores e acorrentamento junto à embaixada brasileira.
Também se tentou o aliciamento dos italianos residentes no Brasil para
revoltar‐se contra o governo brasileiro (sic!). De fato, estas últimas bravatas
não foram muito longe.
É um fato óbvio que matar Battisti seria muito fácil. O ódio irracional contra
Cesare não é o mesmo que o luto ou a indignação compreensível que têm os parentes
de pessoas assassinadas pelos PAC. Entretanto, para quem visita o site das Vítimas do
Terrorismo (AIVITER), é evidente que eles só consideram vítimas às pessoas que foram
assassinadas pela esquerda, mas não às assassinadas pela direita, cujo número foi
quase quatro vezes superior.
As pessoas que têm parentes mortos nos ataques claramente de direita, como
os de Piazza Fontana, Piazza da Loggia, Italicus, Bolonha e muitos outros lugares,
deveram criar suas próprias associações porque o pessoal do AIVITER não os considera
vítimas, nem os aceita como pessoas que precisam compartilhar sua dor.
O sindicato de carcereiros se tem manifestado duramente contra o governo
brasileiro, pela “demora” em extraditar Battisti. Por que tem tanta pressa? Justamente
os carcereiros, que se consideram prejudicados pela morte de Santoro, são os que
reclamam! Ato de justiça ou vingança?90
Se Battisti fosse à prisão, há alguma dúvida de que seria assassinado com a
maior facilidade? Ninguém tentaria, nem mesmo poderia, impedi‐lo.
Lembremos, por exemplo, o caso do terrorista Mário Tuti, o autor do atentado
contra o trem Italicus, e Pier‐luigi Concutelli, outro prisioneiro também comprometido
em atos terroristas de ultra‐direita, que estrangularam na cadeia a Ermanno Buzzi, um
suspeito de terrorismo que tinha muito para falar.
Mortes por vendeta ou por queima de arquivo na Itália são as coisas mais
frequentes. É o primeiro país em crimes per capita desse tipo na Europa.
Se na Itália foi possível matar a Aldo Moro, Peccorelli, o general Della Chiesa, e
muitos outros, por que poupariam uma pessoa sem defesa como Battisti,
especialmente estando presa e rodeada de seus inimigos?
PERIGO DE PRISÃO
No relatório contra Battisti, o ministro relator faz uma afirmação que não deixa
dúvidas sobre suas intenções. A afirmação é que Battisti, que está condenado à prisão
perpétua, não tem sua liberdade em perigo na Itália. Esta afirmação do relator é difícil
de ser levada a sério: Um indivíduo condenado a prisão perpétua não tem sua
liberdade em perigo?
Suponhamos que alguém argumentasse que as prisões italianas não são tão
horríveis, e que todo condenado a perpétua pode sair aos 26 anos, como tenta fazer
crer a lei de execuções penais da Itália.
Para desfazer esse mito, que até é aceito até por pessoas bem intencionadas,
sugiro a leitura da Carta Aberta ao Presidente Lula de Alguns Condenados a Prisão
Perpétua, que eu traduzi por sugestão do jornalista Celso Lungaretti, e se encontra em
vários sites, entre eles:
Aí, os condenados descrevem não apenas a brutalidade do sistema prisional,
como a falsidade de que exista um limite para a pena. As autoridades italianas91
costumam falar de que a pena máxima são 26 anos, mesmo que a condenação formal
seja perpétua, de maneira análoga ao limite máximo de 30 anos no Brasil. Mas,
segundo estes prisioneiros, isso não se cumpre. Eles falam de casos de pessoas que já
pagaram 39 anos de cadeia.
Por outro lado, as mesmas autoridades não se furtam em dizer, em entrevistas
jornalísticas, que não estão dispostas a aceitar do Brasil nenhuma indicação de como
devem punir a seus prisioneiros. O ministro da defesa Ignazio La Rusa garantiu ao
grupo revanchista de AIVITER, que Battisti cumpriria sua pena até morrer.
O ministro de justiça da Itália, Clemente Mastella, foi interpelado pelos parentes
das vítimas da esquerda armada. Estes criticaram a Mastella por aceitar a
exigência de Brasil de manter a Battisti preso “apenas” 30 anos. Mastella disse
para não se preocuparem. Isso é uma coisa que falamos para que nos facilitem a
extradição. É apenas para f... os brasileiros.
Veja uma matéria do prestigioso jornalista Tito Papo sobre as promessas do
governo italiano.
PERIGO DE TORTURA
Já foi dito várias vezes neste texto que os relatórios de Anistia Internacional
bem como jornalistas e historiadores prestigiosos, ilustram a história da tortura
aplicada na Itália nos anos da Estratégia de Tensão. Também reproduzimos de maneira
integral a narração de Bitti sobre as torturas a que foi submetido. Os autores
coincidem em que estas torturas não são tão brutais como as que aplicaram as
ditaduras latino‐americanas, e quase sempre são reversíveis, mas não se pode pensar
que a aplicação de tormentos seja algo “normal”. Tal pensamento é uma terrível
aberração.
Atualmente, as condições são menos duras que naquela época, porém os tratos
brutais não têm desaparecido. Quem desejar ver um relatório atual pode consultar:
Amnesty International Reports, 2009. Itália se encontra na pág. 186 ss.
Aí podem observar‐se inclusive casos de morte de pessoas que foram detidas
pela policia apenas para investigação e acabaram sucumbindo à tortura. Aliás, o Estado
ainda não incluiu a aplicação de tortura como delito. Então se alguém tortura uma
pessoa pode ser acusado, no máximo, de lesões. Se os tormentos não deixam rastos,
ninguém investigará. Aliás, Anistia Internacional reclama da falta de interesse dos
magistrados por investigar estes casos. Embora a maioria das vítimas seja estrangeira,
também há alguns casos de italianos.
JULGAMENTO JUSTO
Quando se fala do perigo que correria um perseguido se voltasse a seu país,
não se deve entender, como acontece habitualmente, que a pessoa protegida deve ser
alguém que é injustamente perseguido. Não. Suponha que a pessoa tem motivos para
ser perseguido, como seria o caso de um ditador, mas, se ele voltar a seu país de
origem, receberia um trato injusto, brutal, etc. Então, por muito que doa, essa pessoa
deve ser protegida.
Por exemplo, todos lembram que há pouco tempo, quando Sadam Hussein foi
executado em Iraque, a Anistia Internacional se manifestou contra e o considerou um
ato cruel. Não é que nossa organização tenha a menor simpatia por aquele patológico
genocida. Mas, não achamos que o linchamento seja um procedimento justo.
Pessoalmente, quando trabalhei algum tempo como voluntário do ACNUR,
conheci muitos argentinos, uruguaios e chilenos perseguidos. Um caso totalmente
esquisito foi o de um oficial do exército argentino que fugia do país, porque tinha
participado de um grupo de extermínio, e agora era ele que estava em risco. Com
efeito, o coronel que dirigia o extermínio queria queimar arquivo e fez uma lista com
as pessoas que ia matar. Este tenente descobriu que seu nome estava aí.
O leitor pode imaginar a repugnância que esse indivíduo me inspirava, mas
pensei que não podíamos deixá‐lo morrer, porque então também estaríamos atuando
como os próprios militares. Então, o encaminhei a meu chefe.
Quando se protestou contra o refúgio de personalidades monstruosas, como
foi o ditador Stroessner, não era porque a gente pensava: “ele merece ser
arrebentado”. Era porque o estado brasileiro lhe estava garantindo a impunidade e
não a justiça, mesmo que soubéssemos que o sistema paraguaio estava dominado por
pessoas semelhantes a ele. Sem dúvida, a pena que lhe teriam dado, seria simbólica,
muito menor àquela que ele merecia, mas haveria um julgamento.
E. Direitos dos Refugiados
REFUGIADOS IRREGULARES
O relator do STF no caso Battisti tem afirmado de que uma prova de
culpabilidade de Battisti era o fato de que ele tenha fugido várias vezes, entrando
clandestinamente nos diferentes países. Não quero discutir o valor social, moral ou
intelectual desta opinião. Mas sim é importante entender que até os próprios
legisladores desautorizam essa opinião.
Na lei 9474, no artigo 8º se estabelece o seguinte:
Artigo 8º ‐ O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento
para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.
Antes de ser convertido oficialmente em refugiado, um deslocado ou um
autoexilado é possuído, quase sempre, por graves temores de repressão, intimidação e
especialmente de refoulement (regresso forçado). Mesmo que não os tivesse, seria
difícil que um perseguido possa conseguir todos os documentos necessários para seu
ingresso no país, e dispusesse da calma e os contatos necessários para preencher essas
formalidades.
DIREITO À LIBERDADE
A maioria dos governos, ainda que outorguem asilo ou refúgio, guardam
enormes preconceitos sobre os perseguidos, sejam deslocados ou autoexilados. O
caráter classista deste preconceito merece uma análise que está fora dos limites deste
texto, mas vale pontuar. Uma praxe abominável é a de encarcerar os candidatos a
extradição, como se o fato de ser requerido pelos governos os tornasse perigosos.
No Brasil, país que sempre brilhou por sua gentileza com os estrangeiros e por
sua ampla política de aceitação de perseguidos, permanece o hábito infame de colocar
em prisão preventiva aos extraditandos. Essa praxe é normatizada pelo Estatuto do
Estrangeiro, introduzido na Lei nº 6.815/80, que a ditadura brasileira sancionou em
1980 para conter o fluxo de perseguidos do Cone Sul.
As pessoas com mais de 40 anos devem lembrar que o dia que se votou essa lei
no congresso houve enormes mobilizações de organismos de DH, da OAB, de órgãos
das igrejas, de intelectuais e até dos próprios políticos. Mesmo com a enorme
heterogeneidade do Movimento Democrático Brasileiro (atual PMDB), quase todos os
seus membros se manifestaram contra.
A lei recebeu algumas modificações que a tornaram mais humana, mas
permaneceu o artigo 84, que foi renumerado para 81 na versão da lei 6964/81:
Art. 81. O Ministério das Relações Exteriores remeterá o pedido ao Ministério da
Justiça, que ordenará a prisão do extraditando colocando‐o à disposição do
Supremo Tribunal Federal
Entretanto, algum tempo atrás, o STF passou a entender que este pedido de
prisão preventiva devia ser harmonizado com as normas do Código de Processo Penal.
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem
pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para
assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime
e indício suficiente de autoria
Esse novo entendimento do STF, por ser uma decisão judicial, obviamente não
é uma lei, mas induz a pensar que uma pessoa que não oferece risco para a sociedade
não deveria ser privada de sua liberdade, até que se confirme o mérito do pedido de
extradição.
Refúgio e Extradição
C. Poder de Conceder Refúgio
Na maior parte dos países, o representante da pessoa jurídica de um país (ou
seja, um estado‐nação), quem personaliza a soberania e pode atuar a nível
internacional para gerenciar tratados, é o chefe de estado. Nos países
presidencialistas, portanto, é o presidente.
Assim sendo, a condição de refugiado deve ser outorgada pelo funcionário de
máximo nível que controla a entrada de estrangeiros no país. Essa função não
necessariamente cabe ao chanceler, pois uma vez que o exilado se encontra em
território nacional, a dependência deste de seu país de origem (que seria o aspecto
internacional) deixa de ser dominante. O foco do problema se desloca para a decisão
sobre se deve ou não o exilado receber refúgio. Embora este não seja uma variante
das fórmulas de imigração, sua permanência no país é um ato migratório.
Em geral, então, as máximas autoridades que decidem o refúgio de um
estrangeiro são os ministros de justiça, o do interior, como é habitual na maioria dos
países da América Hispana, ou o secretário de governo, como no México. Em outros
países, especialmente parlamentaristas, o refúgio é outorgado por secretários de
estado de secretarias típicas de imigração, como o Migrationsverket na Suécia.
Em relação com o refúgio que o ministro Tarso Genro, como representante do
executivo no ministério de justiça, concedeu a Battisti, abriu‐se imediatamente uma
acirrada polêmica (para não dizer, uma diatribe ou, ainda, uma peleja) destinada a
sabotar essa decisão e atingir dois alvos com um único míssil: criar dificuldades ao
governoe começar a sabotar a condição de refugiado, para que esta sofresse bastante
desgaste ao chegar ao STF.
B. Faculdade Discricionária
As atividades administrativas são tradicionalmente consideradas
discricionárias, porque é claro que se cada decisão que toma uma autoridade
executiva tivesse de passar pela justiça, o mundo não poderia literalmente funcionar.
Além disso, implicaria num preconceito extremo, baseado na suspeita de que o
administrador que toma uma medida deve ser policiado pela justiça, porque pode
estar agindo de maneira ilegal.
Este poder discricionário era invocado inclusive pelos próprios juízes, aduzindo
sua incapacidade de apreciar as características específicas de certas medidas. Muitas
vezes isso foi usado para “lavar‐se as mãos” em caso de denúncias específicas de
arbitrariedade (por exemplo, fraudes em concursos públicos) que prejudicavam
especificamente algumas pessoas.
Mas, desde a concessão de refúgio a Battisti, virou rotina dizer que a concessão
de refúgio deve ser um ato vinculado. Se conseguirmos contornar a gíria com que os
problemas jurídicos são geralmente abordados, fica claro que quase todos os atos
administrativos produzem um componente discricionário e um vinculado. Até o ato
administrativo pode ser “vigiado” pelo judiciário, em caso que se produza uma
exorbitância. Pelo menos em teoria, o objetivo da justiça é defender os direitos dos
indivíduos. Em atenção a isso, em alguns países, mesmo que o refúgio possa ser
outorgado livremente pelo funcionário administrativo (ministro ou coisa que o valha),
uma pessoa que vê negado seu pedido de refúgio pode recorrer à justiça, que, nesse
caso, talvez entenda que a vida e segurança dessa pessoa (mesmo sendo estrangeira)
vale mais que a vaidade do funcionário que recusou o refúgio.
Para descaracterizar a decisão do ministro Tarso Genro (que foi chamada
“ideológica”, “partidária” e coisas do gênero) entrou‐se na sutileza de que o refúgio é
um ato vinculado, enquanto o asilo é um ato discricionário. Talvez pensando nesta
brecha, o ex‐ministro do STF, Carlos Mário da Silva Velloso atribui a Tarso Genro ter
concedido asilo sob a cor do refúgio.
Alguns magistrados afirmam que a proteção concedida pelo ministro Tarso
Genro foi injustificada, porque Battisti teria sido declarado refugiado, mas, na
realidade, a figura jurídica que se lhe atribuiu foi o asilo. Segundo alguns membros do
TSF isto invalidaria o direito dado. A justificação é tão confusa e bizantina que é
impossível entender o que está sendo proposto. Veja o comentário de um ministro do
STF aqui
Será que Battisti deve ser punido porque mentiu, ou seja, ele aceitou serrefugiado e de fato, é asilado? E será que essa mentira merece, como castigo, a
deportação e a cadeia perpétua?
Vejamos:
É trivialmente conhecido que o refúgio é aplicável a perseguições ou
catástrofes massivas geradas pelas discriminações e pelas opiniões políticas, avaliando
a média do risco geral do grupo, com independência da vulnerabilidade individual de
cada membro. Além disso, usualmente o refúgio se concede de fora do país dos
refugiados e com base em convenções internacionais, mas isto é relativo, como o
mostram numerosos exemplos bem conhecidos.
Por sua vez, o asilo, especialmente na forma Latino‐Americana, é uma proteção
individual para alguém especificamente perseguido e sobre cujos riscos existe quasecerteza.
Um raciocínio simples mostra, então, que o asilo é um caso particular do
refúgio. Um asilado é o refugiado considerado individualmente (fora da massa de
pessoas que mereceria, por motivos parecidos, a mesma proteção), e cuja evidência de
correr risco é bem maior do que a média.
Exemplos:
Durante as ditaduras neofascistas da América Latina nos anos 70 e 80, países europeus
como Alemanha, Suécia, Noruega, Suíça, Holanda, Bélgica e França deram proteção a cidadãos
chilenos, uruguaios e argentinos. Em todos os casos, se aplicou a instituição de refúgio. O asilo
estrito foi concedido pelo México e o Equador. Essas pessoas foram adotadas às vezes em
grupo, por provir de um país designado como perigoso num determinado período (como
Argentina ou Chile), mas também com base na investigação pessoal de cada caso. Houve
então uma mistura de asilo e refúgio, o que mostra que ambos não são excludentes.
A maneira em que o STF tenta contrapor‐los, para aplicar‐lhes direitos
diferentes, carece de sentido. No Brasil, nos últimos anos, houve várias pessoas que
foram protegidas através do ACNUR; portanto, tecnicamente eram refugiados. Mas
foram acolhidos depois de um estudo individual, com base no grau de perigo que cada
de um deles corria. Outra possibilidade é que o juiz que escreve sobre o assunto esteja
acusando Tarso Genro de má fé, porque deu asilo sob o disfarce de refúgio. Ora, algo
puramente semântico pode anular um ato jurídico? Se um matador serial for detido, e
em seu BO é indiciado por “assassinato” e não por “homicídio”, será que deveria ser
anulada a apreensão?
Estou apresentando estes casos, porque eles mostram muito bem o enfoque de
uma parte do STF. Alguns ministros não parecem interessados em fazer justiça a um
acusado de crimes não provados. Trata‐se de encontrar qualquer pequeno detalhe
sintático ou semântico que possa derrubar o refúgio (ou deveria dizer “asilo”?).
Para alguém ser qualificado como asilado é preciso que haja uma alta
probabilidade de que, no caso de voltar a seu local de origem, corra grave risco. No
caso de refugiados, a existência de risco exige uma probabilidade menor.
No caso de um asilado, a perseguição e o perigo são personalizados. A pessoa
que se asila possui uma quase certeza de que está sendo procurada e que, se atingida,
será objeto de morte, tortura ou prisão. No entanto, observe que esta diferença não é
tão grande. Como dissemos antes, o asilo é, na prática, uma forma especializada de
refúgio. Mesmo as organizações internacionais muitas vezes misturam o termo
“asilado” com “refugiado”.
Embora exista diferença conceitual, o importante, da perspectiva do
direito humanitário, é a proteção do perseguido.
Em muitos casos, o perigo que enfrenta um refugiado e o perigo que ameaça a
um asilado pode ser a mesma coisa.
Então, uma condição para que Battisti se qualifique como asilado (ou refugiado)
é a existência de perigo na Itália. Ora, de que tipo seria esse perigo? Os organismos
internacionais consideram que é suficiente o perigo de perder a liberdade.
No caso de Battisti, não existe a mínima dúvida de que ele perderia a liberdade.
Itália o condenou a prisão. Saber que ele vai ser preso sob condições subumanas não é
uma conjetura; é uma certeza!
Portanto, os que exigem “provas” de sua perseguição e do grave risco que
correria na Itália, pensam que a prisão perpétua não seria um perigo, mas um castigo
justo e necessário. Este arrazoado é uma manifestação de preconceito. Novamente,
como foi dito, este tipo de raciocínio torna inútil o asilo. Para que asilar a alguém cuja
culpabilidade se aceita por subserviência?
Mas, Battisti também tem argumentado que enfrenta risco de morte. Alguns
membros do CONARE afirmaram que não havia certeza de que ele pudesse ser
assassinado.
Obviamente, não pode existir uma garantia de 100% de que um asilado que é
vítima de refoulement, vai ser morto. Salvo que o perseguido tenha sido, oficialmente,
condenado a morte, os que se propõem matá‐lo vão produzir um atestado
prometendo isso.
No caso de Battisti parece muito provável o risco de morte. Simular um
acidente numa prisão é um artifício trivial, que na Itália foi usado várias vezes, inclusive
com pessoas menos perigosas, como se descreve na obra Morte Acidental de um
Anarquista do prêmio Nobel Dario Fo, onde o anarquista Pinelli, enquanto estava
sendo interrogado numa delegacia “caiu de um 4º andar”. Segundo um delegado, ele
confundiu a janela com uma porta!
Aliás, a Itália possui características culturais especiais no Ocidente, como a de
ser o primeiro país que teve sociedades criminosas organizadas e foi capaz de exportálas
às Américas, onde esse problema não existia. Também, a tradição das vendettas no
Sul tem‐se mantido durante séculos, e é evidente de que estes 30 anos corridos desde
a fuga de Battisti não fizeram aos policiais italianos esquecer seu ódio pela esquerda.
Como indicamos antes, se deve levar muito a sério que os sindicatos de agentes
penitenciários se tenham manifestado contra Battisti, depois de 28 anos que ele saiu
da Itália. Um caso concreto o oferece a já mencionada AIVITER, Associazione Italiana
de Vittime del Terrorismo (www.vittimeterrorismo.it). Um de seus editores chama
“gentalha desprezível” aos que defendem os direitos de Battisti dentro da lei,
especialmente a seus advogados franceses. Ou seja, eles não aceitam nem o direito
tradicional de defesa.
Quando o asilado não é perseguido massivamente (como acontece mais
frequentemente no caso do refúgio), por causa de raça, fé, nacionalidade, etc., pode
acontecer que a pessoa tenha cometido um ato que, para os perseguidores, é crime.
Então, a condição para ser asilado deve ser que esse crime seja político. Entres
esses crimes estão: formação de quadrilha, guarda de armas, roubos com finalidades
políticas, pertinência a organização de luta política violenta. Todos esses delitos foram
considerados políticos pelo STF até 2006. Não há nenhum motivo para pensar que a
legislação devesse ter mudado tão rapidamente, até porque a realidade do problema
do refúgio não mudou nada nestes três anos.
Mas, agora, alguns membros do STF parecem achar que toda aquela
jurisprudência tornou‐se, bruscamente, errada.
C. Quem Autoriza a Extradição?
Quando Battisti foi detido no Brasil em 18/03/2007, logo em seguida, no mês
de maio, a Itália pediu sua extradição. Ambos os países já tinham assinado um tratado
de extradição, mas observemos qual é seu teor.
Tratado de Extradição com Itália ‐ Artigo 1 ‐ Obrigação de Extraditar
Cada uma das Partes obriga‐se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo
as normas e condições estabelecidas no presente Tratado, as pessoas que se
encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciárias
da Parte requerente [...] Grifo meu.
É evidente que as partes (os chefes de cada um dos estados) se obrigam
reciprocamente a extraditar as pessoas pedidas, porém “segundo as normas e
condições estabelecidas no presente Tratado”. O Tratado estabelece uma obrigação
moral entre chefes de estado e não implica deixar a decisão final ao Supremo Tribunal
Federal. No que se refere às normas e condições do Tratado, o artigo 3 é sumamente
claro:
1. A extradição não será concedida:
b) se, na ocasião do recebimento do pedido, segundo a lei de uma das Partes,
houver ocorrido prescrição do crime ou da pena;
c) se o fato pelo qual é pedida tiver sido objeto de anistia na Parte requerida, e
estiver sob a jurisdição penal desta;
e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela Parte requerida, crime
político;
f) se a Parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa
reclamada será submetida a atos de perseguição [...] Grifos meus.
O Ministro Marco Aurélio de Mello está estudando o problema da prescrição,
mas já houve várias vozes autorizadas (Greenhalgh, Barroso, e outros) que afirmaram,
ao longo dos oito meses do cativeiro de Battisti, que esta condição já se cumpriu.
Portanto, o ponto (b) do artigo 3 nega a extradição.
O Brasil já emitiu uma ampla anistia para todos os opositores armados ao
governo nas décadas de 70 e 80, incluindo a anistia constitucional de 1988, que é
muito abrangente. Por analogia, um cidadão estrangeiro que esteja sob jurisdição
brasileira e que tenha sido condenado por ações similares, deveria estar protegido da
mesma maneira.
As conseqüências internacionais da possível extradição de Battisti seriam
desastrosas. O poder de conceder refúgio passaria dos especialistas a juristas
que lidam com os aspetos formais do direito. A vida e a segurança dos
perseguidos passariam a depender de questões formais.
Ao falar no problema da extradição, o relatório do STF não diferencia entre
quem autoriza e quem ordena a extradição.
A lei 9474 diz, no título V, capítulo 1, artigo 33, de maneira muito categórica,
que:o reconhecimento do refúgio obstará...qualquer pedido de extradição.
Por sua vez, o que a Constituição Federal afirma no artigo 120 é que:
Compete ao STF [...]
i) processar e julgar, originariamente: [...]
g) a extradição solicitada por estado estrangeiro.
Ora, quando Battisti foi considerado refugiado pelo ministro Tarso Genro, em
janeiro de 2009, pelo art. 33 da lei 9474, o pedido de extradição ficou, nesse
momento, “obstado”. Ou seja, esse pedido deixou de existir.
Então, esse pedido de extradição não pode ser enviado ao STF nem a parte
nenhuma para tomar decisão sobre ele, porque ele foi extinto. Não se estudam coisas
que já não existem.
Há outro detalhe:
O STF está incumbido de processar e julgar a extradição, segundo a
Constituição. Mas, não diz que sua decisão tenha força compulsória para o poder
executivo, ou seja, o STF não pode obrigar o poder executivo a extraditar ninguém.
Podemos combinar o artigo 102 da Constituição com o artigo 83 (ou 81) do Estatuto do
Estrangeiro, que diz:
Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do
Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo
recurso da decisão.
Isso significa que é necessário que o STF se pronuncie sobre a legalidade do
pedido. Se o STF diz: “sim, podem extraditar”, então ele está autorizando. Se ele diz
“não podem”, então nem o presidente nem ninguém poderia executar a extradição.
Entretanto, esta condição necessária não é suficiente. Nem a Constituição nem
o Estatuto dizem que a decisão do Supremo, quando positiva, obriga a autoridade a
cumpri‐la.
O refúgio extingue a extradição. Então, o STF vai julgar algo que não existe. Para
contornar essa falácia, o relator usou um recurso igualmente equivocado: anular
o refúgio dado por Genro.
D. Quem Ordena a Extradição?
A única autoridade que pode ordenar a extradição é o poder executivo, ou
seja, o próprio presidente ou a pessoa à qual delegue esse poder. Existem várias razões
que determinam esta situação.
PRIMEIRO: o STF é uma corte constitucional e não um organismo executor.
Mesmo que tenha poder, como qualquer órgão judiciário, para convocar a polícia, não
pode, por sua própria conta, ordenar à polícia federal que entregue Battisti ao governo
italiano. Como teoricamente deveria acontecer com qualquer tribunal, seu objetivo é
proteger o indivíduo e não atuar como procurador de quem quer que seja (brasileiro
ou estrangeiro) para punir os inimigos do requerente.
Então, o STF pode proibir ao presidente extraditar uma pessoa que, de acordo
com o julgamento do tribunal, não deveria ser entregue aos requerentes. Mas não
pode obrigar a entregar alguém.
SEGUNDO: pelo princípio que rege as relações internacionais, como a extradição
não é um problema interno do país (diferentemente do refúgio), quem representa o
país no exterior (ou seja, o executivo) é quem deve tomar a decisão final.
O presidente do STF e o próprio relator disseram que o presidente Lula deveria
lhes obedecer (sic), mas atualmente essa prepotência parece ter diminuído face ao
descabido da ameaça. Aliás, na sessão de 09 de setembro de 2009, os ministros
Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa e Eros Grau deixaram muito claro que o tribunal não
tem como missão extraditar ninguém. Ele só pode apreciar a validade ou não validade
jurídica do pedido do requerente.
Ao mesmo tempo, alguns dos próprios juízes que acompanharam o relator na
votação parecem mostrar dúvidas sobre a afirmação da cúpula do tribunal, de
que é possível passar por cima da decisão do Presidente da República.
Jurisprudência
A. Extradições não Concedidas
Um caso interessante, não político, de extradição negada, foi a do assaltante
britânico RONALD BIGGS, que se escondeu no Brasil depois de uma longa fuga por
diversos lugares do planeta.
Em 1974, um jornalista britânico descobriu a presença de Biggs no Rio de
Janeiro e comunicou o fato a Scotland Yard. Apesar das gestões do governo britânico
junto à ditadura brasileira, Biggs não pôde ser extraditado, porque sua parceira estava
grávida. Este fato não tem relação com refúgio, mas mostra que alguns princípios (por
exemplo, o de que o pai de um brasileiro não pode ser expulso) fazem parte de uma
tradição humanitária e hospitaleira tão forte, que nem os próprios militares, inclusive
ante um crime comum, tiveram ânimo de violá‐los.
A proteção que brindou o governo brasileiro foi ilimitada, e inclusive se
ofereceu a receber novamente a Biggs, quando um grupo de piratas o seqüestrou e o
levou ao Caribe, com ânimo de “vendê‐lo” à Grã Bretanha. A iniciativa falhou, porque
não existia tratado de extradição com o país dos seqüestradores. Recentemente Biggs
abandonou o Brasil por própria vontade e, aparentemente, sem pressão nenhuma por
parte do Brasil.
B. O Caso Firmenich
Houve no Brasil poucos casos de extradições que prejudicaram autores de
crimes estritamente políticos. O mais conhecido, que marcou tristemente a história do
Brasil por sua extrema iniquidade, foi o de Olga Benário.
O único caso recente é o do argentino Mario Eduardo Firmenich. Este foi um
dos fundadores e principal chefe da organização armada Montoneros, um grupo
especializado em guerrilha urbana, cujo objetivo nos anos 60 era derrubar a ditadura
militar da época e favorecer o retorno de Perón, tarefa na qual Firmenich teve
importante participação.
Depois das eleições argentinas de 1983, quando a mais recente das ditaduras
abandonou o poder, o novo governo democrático decidiu acalmar a possível ira dos
militares, e passou a perseguir antigos chefes de movimentos guerrilheiros. É
importante ter em conta que estes movimentos, salvo o chamado EXÉRCITO
REVOLUCIONÁRIO DO POVO, não eram marxistas, senão grupos nacionalistas católicos cujo
apelo ao socialismo era bastante difuso.
O governo argentino pediu a extradição de Firmenich à já agonizante ditadura
de Figueiredo, e o réu foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 24/10/1984. Este
foi o único caso de extradição de um refugiado por razões políticas desde Olga Benário
até hoje. Entretanto, embora movido por interesses políticos de ambos os governos,
essa extradição não foi totalmente iníqua. Segue um resumo da ementa do Acórdão do
STF em que aparece esse processo. Os grifos são meus.
Extradição. Crimes políticos. Decisão sobre os mesmos crimes em outro
processo de extradição, o de Mario Eduardo Firmenich, do Movimento Peronista
Montonero. No processo de extradição de Mario Eduardo Firmenich, foram
considerados crimes de natureza política os que lhe foram imputados de
deposito de explosivos e posse de arma de guerra, pelo que sua extradição veio a
ser concedida por outros crimes, mas não por aqueles. Em conseqüência, de
conceder‐se habeas corpus a paciente, Maria Elpidia Martinez Aguero, para que
seja trancado qualquer expediente relativo à sua extradição e que tenha por base
a acusação de cometimento daqueles mesmos crimes de deposito de explosivos e
de posse de armas de guerra, que por ela teriam sido cometidos juntamente com
o aludido Mario Eduardo Firmenich.
Deve observar‐se que a posse de armas de guerra e explosivos foi considerada
crime político pelo STF e, portanto, não causadores do processo de extradição. Uma
amostra disso é que a companheira de Firmenich, que tinha cometido os mesmos
delitos, não foi extraditada, e pôde conservar sua condição de refugiada.
O caso de Firmenich foi infinitamente mais grave que o de Battisti e não pode
servir de argumento para a extradição deste. Com efeito, desde junho de 1970 em
diante, os atos de violência cometidos pelo grupo de Firmenich foram abertamente
propagandeados por ele próprio e por seus simpatizantes.
A revista El Descamisado (O Descamisado), órgão dos Montoneros, que na
década de 70 tinha uma enorme circulação, descreveu em um de seus números a
execução de um militar reformado que tinha sido ditador nos anos 1955‐1958. Eles se
atribuem essa execução sem nenhum atenuante, a consideram justa, e se gabam do
método empregado para fazê‐la, que não deixou ao executado nenhuma chance de
defesa.
Também, Firmenich se orgulhou de diversos sequestros e de atentados a
bomba onde morreram civis, e também policiais que não estavam em serviço naquele
momento, nem podiam ser qualificados, massivamente, de torturadores.
O Relator de Battisti compara esse caso com o de Firmenich. Ambos, entretanto,
não têm nada a ver. Firmenich anunciou ter cometido crimes durante 14 anos,
enquanto sobre Battisti não há prova nenhuma. Aliás, o fato de que as provas
contra Battisti tenham sido inventadas é um indício de que existe o propósito de
prejudicá‐lo. Se ele tivesse cometido algum desses assassinatos, a Corte de
Milão com certeza apresentaria as provas!
C. O Caso Falco
Em fevereiro de 1989, o jovem argentino Fernando Carlos Falco, membro do
movimento de esquerda denominado Todos pela Pátria, fugiu ao Brasil depois de ter
caído numa cilada montada pelo Exército Argentino no quartel de um poderoso
regimento localizado na cidade de La Tablada, perto de Buenos Aires. O objetivo era
atrair os membros do movimento, com o boato de que nesse quartel se gestava um
golpe de estado, sabendo que os jovens, que estavam engajados em ações muito
decididas em defesa da democracia, se dirigiam ao local para evitar a revolta militar.
Depois de que o grupo de jovens chegou ao quartel, os militares abriram as portas, e
receberam os ativistas com fogo de armas pesadas, granadas e bombas incendiárias,
matando quase cinquenta ativistas.
Uns 40 militantes foram torturados e mortos, outros foram capturados, mas
Falco e uns poucos colegas conseguiram escapar. No Brasil, o jovem foi sequestrado
por um comando conjunto das polícias federais argentina e brasileira, mas a PF
brasileira deveu entregá‐lo à justiça. Naquele momento, o governo democrático
argentino (presidido por Raúl Alfonsín, tido na América Latina como um dos líderes da
democracia do continente) tentou mantê‐lo sequestrado, mas não conseguiu e
apresentou um pedido de extradição ao governo brasileiro. Por razões que
desconheço seu caso não mereceu muita difusão, apesar de ser o mais parecido ao de
Battisti. Ele foi julgado pelo tribunal pleno no dia 04/10/1989.
Segue uma transcrição do acórdão do STF. Todos os trechos em destaque
foram grifados por mim, e mostram a tendência do Tribunal que caracteriza sua visão
dos crimes políticos como diferentes do terrorismo.
1. Pedido de extradição: dele se conhece, embora formulado por carta rogatória
de autoridade judicial, se as circunstancias do caso evidenciam que o assumiu o
governo do estado estrangeiro.
2. ASSOCIAÇÃO ILÍCITA QUALIFICADA e a REBELIÃO AGRAVADA, como definidas no
vigente código penal argentino, são crimes políticos puros.
3. (a) Fatos enquadráveis na lei penal comum e atribuídos aos rebeldes:
Roubo de veículo utilizado na invasão do quartel, e privações de liberdade,
lesões corporais, homicídios e danos materiais, perpetrados em combate
aberto, no contexto da rebelião, são absorvidos, no direito brasileiro, pelo
atentado violento ao regime, tipo qualificado pela ocorrência de lesões graves e
de mortes (...)
(b) A imputação de dolo eventual quanto às mortes e lesões graves não afasta
necessariamente a unidade do crime por ela qualificado.
4. Ditos fatos, por outro lado, ainda quando considerados crimes diversos,
estariam contaminados pela natureza política do fato principal conexo, a
rebelião armada, à qual se vincularam indissoluvelmente, de modo a constituírem
delitos políticos relativos.
5 ‐ Não constitui terrorismo o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem
utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos generalizados para a
população civil.
O STF indeferiu o pedido de extradição argentino e garantiu a Falco a
permanência no país. Ele ficou na condição de asilado/refugiado, o qual é mais uma
prova de que ambos os conceitos não são fáceis de separar como pretendem alguns
magistrados. O asilo foi concedido pelo governo, que lhe forneceu documentos e
estadia legal no país, e em condição de refugiado recebeu ajuda econômica do ACNUR
durante os primeiros meses. Viveu normalmente no Brasil, onde formou uma família,
até 2004, quando o novo governo argentino revogou as ordens de perseguição contra
ele, e o convidou a voltar.
O caso Falco é ilustrativo por vários motivos:
A Corte entende de que “homicídios são absorvidos [...] pelo atentado conexo
ao regime” (§ 3), e que todos os atos estão contaminados pelo caráter político
do crime principal (§4). Este é um fato que o relatório contra Battisti tenta
negar, pretendendo que ambos os casos são muito diferentes. Isto é uma
distorção evidente da realidade.
Deve observar‐se que Falco e alguns de seus companheiros foram perseguidos
e ameaçados pelo governo argentino, não durante a ditadura, mas durante o governo
posterior a ela (1983‐1989), que era considerado um modelo de democracia latinoamericana.
Este é pelo menos um dos numerosos contra‐exemplos possíveis contra a
ridícula falácia de que “nos governos democráticos não existem abusos judiciais”.
Talvez o relatório contra Battisti pretenda sugerir que, em 1989, os membros
do plenário do STF que votaram massivamente a favor de Falco estavam todos
equivocados. Mas, se isso é o que pensa o relator, deveria comprometer‐se e afirmá‐lo
claramente.
Como pode o relator sustentar que regimes democráticos não perseguem seus
cidadãos. Então, o governo argentino de Alfonsín, em 1989 era uma ditadura?
Curiosamente, todos os políticos e diplomatas brasileiros sempre citaram esse
governo como sinônimo de democracia.
D. O Caso Medina
Oliverio Medina é um padre colombiano devotado à pastoral em defesa dos
camponeses, e um grande mediador desde 1983 até 2000, nos processos de paz entre
as diversas forças revolucionárias e o governo da Colômbia.
Em 2000, foi preso pela Polícia Federal brasileira, mas foi logo liberado. Por
exigência da Colômbia, foi novamente capturado em 2005, num operativo sigiloso em
cumplicidade com Interpol. Como de hábito, o governo colombiano o acusou de
terrorismo e pediu sua extradição, que foi negada num processo memorável.
Em julho de 2006, o CONARE lhe concedeu refúgio. Este é o terceiro exemplo
importante de alguém perseguido por um estado formalmente democrático, o que
contradiz novamente que um perseguido por uma democracia não deveria ser asilado.
Finalmente, a extradição foi indeferida pelo STF em março de 2007, uma data muito
próxima. Reproduzo a Ementa do STF, onde todos os grifados e as observações entre
os parágrafos são minhas e não aparecem no texto original.
Extradição: Colômbia. Crimes relacionados à participação do extraditando − então
sacerdote da Igreja Católica − em ação militar das Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC). Questão de ordem. Reconhecimento do
status de refugiado do extraditando, por decisão do comitê nacional para
refugiados − CONARE: pertinência temática entre a motivação do deferimento do
refúgio e o objeto do pedido de extradição: aplicação da Lei 9.474/97, art. 33
(Estatuto do Refugiado), cuja constitucionalidade é reconhecida: ausência de
violação do princípio constitucional da separação dos poderes.
1. O STF reconhece que o Estatuto do 1. De acordo com o art. 33 da L.
9474/97, o reconhecimento administrativo da condição de refugiado, enquanto
dure, é elisiva [proibitiva] por definição, da extradição que tenha implicações
com os motivos do seu deferimento.
2. É válida a lei que reserva ao Poder Executivo − a quem incumbe, por atribuição
constitucional, a competência para tomar decisões que tenham reflexos no plano
das relações internacionais do Estado − o poder privativo de conceder asilo ou
refúgio.
3. A circunstância de o prejuízo do processo advir de ato de outro Poder − desde
que compreendido na esfera de sua competência − não significa invasão da área
do Poder Judiciário.
4. Pedido de extradição não conhecido, extinto o processo, sem julgamento do
mérito e determinada a soltura do extraditando.
5. Caso em que de qualquer sorte, incidiria a proibição constitucional da
extradição por crime político, na qual se compreende a prática de eventuais
crimes contra a pessoa ou contra o patrimônio no contexto de um fato de
rebelião de motivação política (Ext. 493).
A condição de refugiado é constitucional, e sua aplicação pelo poder Executivo
não viola a separação de poderes, e que o fato de ter sido declarado refugiado impede imediatamente a extradição. Além disso, reconhece a atribuição do poder executivo
para conceder refúgio.
Isto foi deliberado 3 anos antes de começar o caso Battisti.
Entretanto, o relatório do STF contra Battisti contradiz notoriamente essas
afirmações. Numa manifestação cheia de retórica, o relator diz que a atitude de Tarso
Genro é uma “intromissão” nas atividades do STF. Também, ignora‐se a imediata
extinção da extradição produzida pelo Instituto do Refúgio.
Trata‐se de um critério que é o estritamente oposto da famosa máxima de que
a lei é universal e abstrata. No caso Battisti, a lei é individual e personalizada, e tratada
de tal maneira que visa prejudicar o réu. Trata‐se do caso de distorção mais iníquo e
incoerente da história jurídica do Brasil. Aliás, não apenas isso. Seu grau de iniquidade
é extremo, comparável apenas à forma que atuaria um tribunal de exceção num
sistema absolutista.
Esta é uma situação de extrema gravidade que não guarda nenhum paralelo
com outros fatos acontecidos no país, nem mesmo durante a ditadura. Trata‐se
de ir modificando não apenas a lei, mas também os princípios legais básicos,
como o direito de isonomia, para obstruir o refúgio de Battisti.
Há ainda um ponto muito importante levantado pelo parágrafo 2 do acórdão
acima, onde se ignora a diferença metafísica que o magistrado Carlos Veloso faz entre
asilo e refúgio.
O parágrafo 2 reconhece o direito do executivo para conceder tanto
refúgio como asilo, contrariando a pretensão do atual STF de que cabe a
ele próprio decidir sobre esse assunto.
É evidente que existe ampla animosidade contra Battisti, pela qual alguns
ministros se forçam de maneira ostensiva em ignorar a semelhança das
jurisprudências. Desejo sair agora um pouco do tema jurídico e fazer um comentário
que ajudará melhor a entender a situação.
A profunda repulsa que o presidente ou relator e alguns outros membros do STF
mostram contra Battisti deve estar baseada em razões muito profundas. Sem
dúvida, algumas são ideológicas. Outras devem estar relacionadas com
interesses sociais, diplomáticos e, eventualmente, de alguma outra natureza
mais pragmática.
É necessário, todavia, fazer uma ressalva importante. Apesar de que o direito
de Battisti a ser imediatamente liberado é evidente, é possível que alguns dos
ministros se tenham sentido arrastados pela retórica do relator, rica em sofismas,
extrapolações e citações totalmente fora de contexto. Por isso, desejo salientar:
Nem todos os juízes que acompanharam o voto do relator
parecem ter ânimo negativo. Alguns dos votos favoráveis à
extradição sugerem que os ministros que assim votaram se
sentiram confundidos pela forma ambígua do relatório. Mas,
isso não deve ser um problema. Reconhecer os próprios erros é
mais corajoso que a capacidade de não errar.
Julgado no Brasi l
A. Violações à Carta Americana
Em 18/03/2008, Battisti foi detido pela Interpol, e pelas polícias italiana,
francesa e brasileira, em arrepio do art. 33 da Convenção de Genebra de 1951 que
proíbe punir imigrantes irregulares que procuram refúgio. Desde então, a justiça
brasileira tem violado os seguintes artigos da Convenção Americana de DH:
Art. 14. Todos têm direito de apresentar petições [...] e obter pronta
resolução.
No 11/02/2009, o Senador Suplicy pediu ao STF que permitisse a Battisti se
manifestar, mas não obteve resposta do presidente nem do vice‐presidente.
Art. 15. Todo preso tem direito à verificação da legalidade de sua prisão, e a ser
julgado sem demora ou liberado.
A justiça não verificou a legalidade da prisão de Battisti até o dia do
julgamento. Quando o julgamento começou, a demora, que segundo a Carta
Americana deve ser mínima, já atingia os 30 meses. A prisão foi mantida a pesar de 9
pedidos de liberdade da defesa, e seu único fundamento foi a proibição do governo
italiano, que atuou como supervisor dos presidentes do STF.
Art. 16. Todo acusado é inocente, até que se prove o contrário.
Em 04/02/2009, o ministro CELSO DE MELLO confessou à mídia que existia um
caminho para condenar Battisti: mudar a jurisprudência, que é totalmente favorável ao
réu. Inclusive deixou transparecer que as leis podem ser mudadas aos poucos.
Mostrou‐se favorável à possibilidade de extraditar pessoas inclusive quando a pena
que receberá no país requerente seja perpétua, o que está expressamente proibido
pelas leis brasileiras. Até usou como exemplo um cidadão chileno cumprindo pena por
sequestro no Brasil, não extraditado porque o Chile possui pena de prisão perpétua.
No entanto, o ministro parece entender que essa cláusula constitucional (que constitui
uma das cláusulas pétreas da Constituição) poderia ser violada.
O ministro Celso de Mello declarou‐se impedido no julgamento de Battisti,
sem indicar as razões do impedimento. Battisti era desconhecido no Brasil e seu
julgamento não envolve, de maneira aberta, nenhum conflito de interesses dentro do
estado brasileiro. Então, por que um juiz estaria impedido? Vou ousar fazer uma
conjetura: pessoalmente, acredito que Celso de Mello tomou consciência de que a
animosidade que tinha demonstrado contra Battisti era totalmente infundada, e
preferiu mostrar perfil baixo. Entretanto, cometer erros, inclusive em casos graves, é
próprio da condição humana: o Ministro Celso de Mello talvez possa ajudar a salvar a
imagem de parcialidade da cúpula do STF, e votar de acordo com sua consciência.
Finalmente, o último artigo da Carta Americana de DH violado pelo STF foi:
Art. 17. Proclama o direito de receber asilo.
Em 24/03 o presidente do STF afirmou que, se este Tribunal assumir uma
atitude favorável à extradição, o governo será obrigado a baixar a cabeça e obedecer.
Desta maneira, o STF não apenas declara seu próprio caráter todo poderoso, mas
também atribui à sentença italiana uma espécie de sacralidade intocável. Isto é
totalmente contrário aos princípios básicos do direito, segundo os quais qualquer
dúvida beneficia o réu. E, neste caso, não há uma dúvida. Há dúzias de dúvidas, e
dúzias de certezas de fraude pelo Tribunal de Milão.
Foi por causa disto que, em junho de 2009 enviei uma denúncia ao Conselho
Interamericano de Direitos Humanos (CIDH), dependente da OEA, colocando ao
presidente do STF e ao relator, como possíveis réus de violações aos DH. Neste
momento (outubro de 2009) espero que essa denúncia não seja necessária!
B. Julgamento Prévio
A intromissão do STF no mérito desta decisão, mostra que pretende não
apenas cumprir sua função legítima de interpretar a lei, mas também modificar e até
criar leis. Esta decisão aberrante foi reconhecida, porém, por um dos ministros do STF.
Como já mencionamos, o ministro Celso de Mello tinha dito que o STF poderia
modificar sua jurisprudência anterior sobre refúgio.
É verdade que, em alguns casos, é necessário modificar a jurisprudência por
razões muito poderosas que obriguem a um novo entendimento da lei. Por exemplo,
quando o Fascio foi derrotado durante a Segunda Guerra Mundial, não apenas foram
derrogadas muitas leis repressivas, mas foi mudada a jurisprudência baseada em
muitas das leis que permaneceram. Também em América Latina houve modificações
de jurisprudências deflagradas por processos profundos, como a re‐democratização de
em diversos países, e em alguns casos, como no México, certa jurisprudência foi
considerada muito atrasada.
Entretanto, que problemas graves houve no Brasil nos últimos três anos, para
modificar uma jurisprudência que está diretamente vinculada com algo tão
radical e permanente como os Direitos Humanos?
A invasão do STF sobre o governo foi declarada sem nenhuma inibição pelo
presidente do tribunal. Gilmar Mendes ameaçou ao presidente Lula, durante uma
conferência de imprensa, sobre a suposta obrigação deste de obedecer ao que o STF
decida sobre a extradição de Battisti. É provável que mesmo esta aberração não tenha
sido muito popular, porque Mendes não voltou a insistir no assunto.
Uma forma permanente de manifestar julgamento prévio contra Battisti
apareceu durante muitos meses na forma em que a cúpula do STF obedeceu todas as
indicações da embaixada e do governo italiano. Mesmo se Battisti fosse culpado, a
maneira extrema de agradar aos funcionários do Quirinal constitui uma agressão
prévia e ilegal contra o réu. Também é, claro, uma afronta a autonomia do Brasil.
Há numerosos exemplos disto (no total, devem ser mais de 50), mas quero
mencionar o mais escandaloso.
O Embaixador da Itália no Brasil, Michele Valensisi, manteve uma conversa
privada com o presidente do STF, Gilmar Mendes, no dia 20 de janeiro de 2009. A
reunião entre ambos esteve rodeada de excepcional mistério, como se descreve nos
jornais da época. Vide, por exemplo aqui:
O sigilo em torno deste encontro, que foi encerrado de maneira crítica, com a
saída do embaixador por uma porta secreta e a negativa das assessorias de imprensa
de ambos a comentar o evento, é inusitado inclusive em reuniões de cúpula entre altas
autoridades. Apesar de todo isto, se supõe que Valensisi pediu garantias a Gilmar
Mendes de que poderia entrar com mandato de segurança contra a decisão de Tarso
Genro de conceder asilo a Battisti.
Como é bem sabido (e foi lembrado recentemente pela defesa de Battisti), o
mandato de segurança pode ser exercido por pessoas físicas e jurídicas dentro do país,
ou por pessoas físicas e jurídicas de direito privado fora dele, mas não por governos
estrangeiros. De acordo com isto, a acolhida do mandato de segurança foi ilegal. Deve
ter sido esse aspecto o que motivou tamanho mistério.
Como as irregularidades são muitas, mencioná‐las todas entediará o leitor.
Mas, quero mencionar o último caso. Extraoficialmente, as forças dirigentes na Itália
alentaram a pretensão de Alberto Torregiani, filho do ourives assassinado em 1979, de
prestar declarar pessoalmente no STF. Mesmo que o sentimento da vítima seja
compreensível, a colocação jurídica do problema carece de sentido. O STF não é uma
delegacia de polícia onde se podem fazer acareações.
Finalmente, cabe destacar a função obscura do governo italiano, quando o
relator do processo (nesse momento, presidente interino do STF) lhe permitiu algo
assim como “participar do processo”. O que quer dizer isso, exatamente? Itália é parte
requerente, então já está participando. Nomeou um advogado como lhe permite a lei.
Não é amicus curiæ, já que é parte diretamente interessada. O que, então, pretende?
O relator deixou transparecer que Itália tinha direito a algo que foi formulado em
obscuro juridiquês, mas poderia ser traduzido assim: “participar das decisões do STF”.
De fato, o relator sempre obedeceu todas as indicações do governo italiano e o
consultou permanentemente.
Uma pura curiosidade: quanto a Itália terá participado na redação do relatório?
Talvez algum dia saibamos.
C. Parecer do Procurador
O procurador‐geral da República na época em que Battisti foi preso, Antonio
Fernando de Souza, recomendou, em seus últimos pareceres que o processo de
extradição deveria ser arquivado. Ele manteve o critério de que devia respeitar‐se o
artigo 33 da lei 9474, que diz:
Artigo 33 ‐ O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de
qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a
concessão de refúgio
Este critério foi mantido pelo procurador que sucedeu a Souza no cargo.
D. Argumentos da Defesa
O advogado LUÍS BARROSO, que compartilha com EDUARDO GREENHALGH a defesa
de Battisti, tem colocado os eixos de sua argumentação em várias dimensões
complementares: a presunção da inocência, o caráter político dos delitos atribuídos, a
existência de uma anistia, a prescrição da pena e, especialmente, o aspecto
humanitário do problema, que é fortemente negligenciado no relatório do STF.
Barroso afirma que a questão é jurídica e não política, afastando as críticas
maliciosas feitas pela mídia e pela direita, no sentido de que Tarso teria concedido
refúgio a Battisti por ser um ex‐guerrilheiro, e que não o faria com pessoas de outra
ideologia.
Nesse contexto, coloca ênfase no fato de que o que está em jogo é a vida de
uma pessoa (o que mostra, claramente, sua suspeita do que possa acontecer a Cesare
na Itália) e de seu direito à liberdade. Portanto, conclui que não se pode falar de
direitos de esquerdistas ou direitistas, pois se trata de direitos da condição humana em
geral.
O discurso de Barroso surpreende pela objetividade e precisão, munidas de
calor humano, características infrequentes na linguagem jurídica, o que talvez seja o
sinal de uma nova geração de juristas, influenciados pelos avanços dos Direitos
Humanos e de uma sutil, mas importante diminuição das tendências rançosas e
formalistas.
Numa das apresentações de seus argumentos, ele diferencia entre teses morais
e teses jurídicas.
Do ponto de vista moral, mostra que a afirmação de Battisti que nada teve a
ver nos quatro assassinatos é muito provavelmente verdadeira, dada a falta de provas,
com independência de qualquer apreciação subjetiva sobre a mesma.
O segundo argumento moral se refere à tradição humanitária do Brasil, ao
manifestar oposição a condenar uma pessoa a passar a vida numa prisão. É a primeira
pessoa que faz uma referência enfática a um fato capital: Battisti está re‐socializado,
porque 28 anos após sua fuga nunca mostrou uma atitude negativa.
Dentre as causas jurídicas, afirma um fato de evidência absoluta a luz das leis: é
válida, tanto formal como materialmente a decisão do Ministro da Justiça de conceder
refúgio. Assim, sendo, não cabe a extradição, que é extinta pela mesma condição do
refúgio. Além disso, tanto a concessão de refúgio quanto a extradição são atos
soberanos do Estado Brasileiro e seu representante é o governo, na pessoa do
presidente da república.
E. É Possível Julgar Sentença Estrangeira?
Não apenas nesta composição atual do STF, mas de uma maneira mais geral,
existe em vários países o preconceito de que o mérito de uma sentença estrangeira
não pode ser julgado. Esta crença não se baseia numa concepção de justiça nem,
muito menos, de Direitos Humanos, mas num problema de conveniência internacional.
Não devemos criticar os abusos e iniquidades de outros países, para que não tomem
represálias contra nós, especialmente a nível econômico.
Esta etiqueta recebe o pomposo nome de Soberania Jurídica.
Esta concepção conduz, no melhor dos casos, a um círculo vicioso. O país A
recebe um estrangeiro que é requerido pelo país B. Suponhamos que A descobre que a
acusação feita contra o estrangeiro é falsa, mesmo que a evidência não seja tão
gritante como no caso Battisti. Então, A deveria entregar a B uma pessoa que ele acha
ser inocente, e que será tratada como culpada. A se recusa a usar seus tribunais, sua
polícia, sua autoridade para entregar o extraditando, e B o pode acusar de violar sua
soberania. Ora, quando B exige a entrega de sua presa, se sente com direito a
atropelar a soberania de A.
Seria impossível que o Brasil quisesse reconstruir todo o processo sofrido por
Battisti, mas não se trata disso. O que se afirma é simplesmente que o crime não está
provado.
A objeção não é um problema técnico. Por exemplo, Itália usa o sistema
escocês de sentença trivalente (culpado, inocente, não provado), enquanto Brasil usa o
típico culpado ou inocente. Ninguém diz que Itália não tem direito a extradição porque
a semântica de suas sentenças é diferente da semântica brasileira.
Não se pretende que Battisti seja julgado pelos mesmos rituais brasileiros, com
os mesmo códigos e penas, com cronograma e planejamento similar. Existem, de fato,
no mundo todo, diversos critérios para celebrar um julgamento e emitir sentenças.
Alguns são mais seguros, eficientes e humanos que outros, mas seria difícil questionar
todos esses pontos quando há razoável evidência da culpabilidade do réu.
O que aqui se pretende, com uma definição sensata e universal de DH, é que,
para se conceder a extradição, seja condição necessária provar que existiu o crime.
A atual proposta do relator é que não se investigue se realmente Battisti foi ou
não um assassino. Então, o STF pode estar julgando um fato que não existe. Isto
acrescentaria à iniquidade, ainda o absurdo de pronunciar‐se sobre um fato
imaginado ou inventado.
Não queremos que Itália adote nosso método de abrir uma sessão de
julgamento, que as togas sejam similares em ambos os países, nem mesmo que utilize
sentenças bivalentes. Queremos que ninguém possa ser condenado sem provas, ou,
como neste caso, alguém não seja condenado com numerosos indícios de que é
inocente.
Entretanto, existe uma tendência a reverter esse quadro. O brilhante jurista
Marco Aurélio de Mello já se manifestou a jornalistas sobre a delação premiada. Essa
manifestação não envolve apenas aspectos formais da extradição, mas se refere de
maneira medular aos métodos usados, na Itália, no julgamento de Battisti. Ou seja, ele
está mostrando a existência de falhas no processo contra Battisti, o que significa
abandonar o tabu de que a justiça italiana é sagrada.
F. O Relatório
O relatório de Cézar Peluso, reproduzido por scanner dos fólios originais, pode
ver‐se nos aqui:
Dentro do relatório, como citação, aparece o texto com a decisão de Tarso
Genro sobre o refúgio, em forma quase íntegra (a partir do parágrafo 10). Entretanto,
apesar da integridade, os comentários aos parágrafos são feitos para tirar a decisão de
Tarso de contexto, com o qual se apresentam algumas frases como se tivessem sido
ditas pelo ministro. Uma delas, por exemplo, é a insinuação de que Itália não seria um
país democrático, o que nunca foi afirmado por Genro.
A seguir, faço algumas referências aos problemas encontrados no relatório, que
podem ser chamados de “erros” ou “sofismas”.
Uma observação final é que o STF não está interessado em ver as provas que
estariam no inquérito de Battisti, caso elas realmente existam. Não há interesse em
saber se Battisti é inocente ou culpado. Segundo várias pessoas do círculo de
defensores de Battisti, como, por exemplo, a escritora e arqueóloga francesa Fred
Vargas, o STF não aceitou pedir a Itália os autos com as perícias, dado que nem ela
nem os advogados conseguiram que o governo italiano entregasse cópias.
REJEIÇÃO DO REFÚGIO
O primeiro ato do relator teve lamentável sucesso, criando um precedente
catastrófico na justiça brasileira: extinguir o refúgio dado pelo Ministro da Justiça.
Dalmo Dallari, considerado o maior jurista brasileiro vivo, defende a atribuição
do Ministro para conceder refúgio. No mesmo sentido se pronunciaram outros juristas,
advogados e até agora quatro dos membros do STF. A crença de que o relator estava
certo e que só era contestado por amadores é falsa, porque, se assim fosse, o tribunal
não estaria dividido.
Aliás, a leitura dos votos faz suspeitar que inclusive alguns juízes que
acompanharam o voto do relator pareciam ter alguma dúvida sobre a negação do
poder discricionário do ministro.
SITUAÇÃO ITALIANA
O relator considera uma injúria contra a Itália a afirmação do ministro Tarso
Genro de que, durante o período da Estratégia de Tensão, existiram no país condições
obstrutoras dos DH e que funcionava um estado paralelo. Apesar da cautela excessiva
e até tímida com que o ministro Genro formula todos esses reparos. O magistrado
relator refere‐se com ironia às declarações do ministro Genro sobre a existência de
atos terroristas da direita, como aquele de Piazza Fontana, conhecido hoje por milhões
de pessoas.
Se o relator tivesse lido mesmo o capítulo 1 deste resumo de meu livro, teria
evitado refutar coisas tão evidentes: o estado terrorista não era “paralelo”, mas o
próprio estado oficial italiano; houve tormentos, sadismos e abuso; os stragi foram 26 ,muito mais, portanto, do que os mencionados por Tarso; e o pior, a situação atual da
repressão, embora menos grave, é semelhante. Se o relator tivesse respeito pelas
ONGs de DH, e tivesse lido os relatórios de Anistia Internacional sobre a Itália, de 1977
até 2009 (alguns se encontram em meu site, os mais novos podem ser encontrados no
site americano de AI), teria evitado cometer erro tão grave.
“FUNDADOS TEMORES”
O relator também acha um desaforo duvidar da segurança que Itália oferece a
seus prisioneiros. Deixando a discussão confusa sobre o que seria “fundado temor”, o
concreto é que o juiz manifesta uma espécie de sagrada indignação ao desconfiar de
um governo e uma sociedade tão impecável.
Battisti está condenado à prisão perpétua. Então, ele não suspeita que possa
poder a liberdade. Ele sabe que a vai perder. O governo italiano diz isso. Então,
ser condenado à perpétua sem luz solar, isso não é perseguição? Que mais o
relator pretende que se possa fazer contra ele?
Mesmo se Battisti não tivesse sido julgado, e fosse acusado de delitos mais
leves, a Itália não oferece nenhuma segurança. Se aceitasse se informar, comprovaria
o seguinte:
Trabalhadores honestos de diversos países, dedicados, produtivos, pacíficos,
que não têm antecedentes criminais nem políticos, sofrem o inferno na Itália.
Seus acampamentos e cabanas são incendiados, são capturados pela polícia, são
submetidos à tortura, suas crianças são espancadas.
Segundo Patrizio Gonella, presidente de Antígone em 2009, Itália ficou famosa
como o país europeu cujas punições contra os presos políticos no pós‐guerra foram
mais desproporcionais e cruéis.
É absurdo desprezar a opinião de organizações já provadas por sua honestidade
e prestígio, como a ONG de DH Antigone, cuja credibilidade local é tão grande como a
de Anistia Internacional. Aqui
O presidente de Antígone diz que vários juízes americanos
consideram o regime italiano de reclusão, 41 bis, uma forma de
tortura permanente e, por esse motivo, muitos se recusaram a
conceder extradição de criminosos italianos retidos nos
Estados Unidos e reclamados pela Itália.
Aqui
Mesmo criminosos confessos, traficantes e mafiosos americanos, cumprindo
penas duras nos Estados Unidos, não foram extraditados a Itália, porque algumas
autoridades americanas entenderam que o tratamento dado nesse país era
exageradamente desumano. Um caso bem conhecido desta opinião é o da juíza
americana de imigração Sitgraves (2001‐2006), que, apesar de sua fama de moralista e
inquisitorial, se recusou a repatriar dois italianos por entender que seriam submetidos
a um sistema penitenciário de tormento. Ver detalhes aqui.
http://trac.syr.edu/immigration/reports/judge2007/210/index.html
CRIME POLÍTICO
Os crimes que se atribuem a Battisti são, sem dúvida, políticos, seja quem for o
autor. Há várias razões:
1. A forma de aplicar a sentença é típica de perseguidos políticos.
Na S88, o tribunal acusa a todos os indiciados de “subverter violentamente o
ordenamento econômico e social do Estado Italiano, de promover a insurreição
armada...” (linha 4 em diante), que são típicos delitos políticos.
Além disso, roubo, intimidação e outros podem ser considerados conexos com
crimes políticos. Isto foi o entendimento do STF brasileiro no caso Falco como já foi
visto.
2. O mesmo ministro que implementou as leis repressivas diz que Battisti
cometeu delitos políticos:
Cossiga, que foi ministro de defesa e autor das leis repressivas disse que Battisti
é um criminoso político, mesmo reconhecendo que o odeia.
3. Na Itália, o estado não oferece reparações às vítimas de crimes comuns,
porque se entende que o estado não pode ser responsável por todos os
delitos que acontecem. Portanto, quando paga uma indenização é sempre
para vítimas de crime político.
Alberto Torregiani, filho do ourives assassinado, recebe uma pensão pelos danos
produzidos pela bala que recebeu. Considera‐se então, que o ataque a seu pai
foi crime político.
4. É uma praxe universal da justiça de Ocidente, que as penas dos crimes
sejam aplicadas individualmente, e depois adicionadas. Mas, no caso de
Battisti, ele foi condenado à prisão perpétua de maneira global.
A condenação de Battisti por “subversão mais assassinatos” é uma sentença
típica para crimes políticos e não comuns. Este ponto também foi enfatizado por
Marco Aurélio de Mello.
5. O próprio estado italiano está tratando os crimes como se fossem políticos.
Nenhum delinqüente comum foi nunca reclamado com tanto afinco, com
tanta arrogância, com tamanha coleção de ameaças e provocações.
Ninguém faz isso por um criminal comum.
6. As vítimas de Memeo, Mutti e outros, atribuídas a Battisti, eram inimigos
políticos dos executores. Santoro era um carcereiro que maltratava
prisioneiros, Campagna não era um simples motorista, mas transportava
pessoas aos centros de tortura. Já Torregiani e Sabbadin não eram
inofensivos lojistas. Eram membros de associações de extermínio de
pequenos ladrões, marginais e “vagabundos”, ou seja, linchadores fascistas.
As mortes destas quatro pessoas foram atos cruéis e sem sentido, são contrários
à tradição marxista de luta aberta, mas são políticos e não comuns.
PSEUDOPROVAS
Apesar de afirmar que o Brasil não deve julgar o mérito da sentença italiana, o
relator reproduz numerosos trechos das sentenças, e descreve os crimes aí narrados
como se ele tivesse certeza de que tudo isso é verdadeiro. Enquanto nega o direito a
mostrar a evidente falsidade das acusações, não duvida em apresentá‐las como se
fossem verdadeiras.
Se o jurista nega o direito a avaliar sentenças estrangeiras e proíbe que se
mostre a falsidade das provas, então, por simetria, não deve cometer o erro de
pretender a verdade de pseudo‐provas.
PRESCRIÇÃO
Para uma pena como aquela à qual foi condenado Battisti, o prazo de
prescrição é de 20 anos. O ponto polêmico, porém, é determinar a origem da
contagem desse prazo.
Para alguns, a prescrição deve valer desde a última confirmação da pena, para
outros desde a primeira condenação, há ainda quem defenda que depende do ângulo
(defesa ou acusação) a partir do qual se fez a contagem. Neste relatório todas as
referências à prescrição são feitas com base na alternativa que mais prejudica o réu.
Segundo Greenhalgh, o parecer da Procuradoria Geral da República, quando
afirma que ainda não prescreveram as penas, incorre no erro de se fiar na Nota Verbal
da Itália. De acordo com o defensor, os termos do trânsito em julgado que foram
analisados são relativos aos recursos da defesa, não da acusação. E a prescrição da
pretensão executória, segundo a lei brasileira, ocorre quando a sentença transita em
julgado para a acusação.
O advogado deduz, então, que a prescrição já aconteceu em 13 de dezembro
de 2008. Luís Barroso possui um argumento similar. Outros juristas convocados a se
manifestar sobre o assunto possuem a mesma opinião.
SOFISMAS DE AUTORIDADE
O relator baseia alguns de seus argumentos no fato de que outras instituições
do planeta se recusaram a apoiar a Battisti. O venerável juiz parece ignorar que todos
somos cientes dos jogos de interesse que existem detrás da aparente pureza da
justiça, especialmente no plano internacional, de modo que esse argumento ad
uerecundiam (de autoridade) não parece muito sério.
No caso do Parlamento Europeu, deve lembrar‐se que o governo italiano
insistiu muitas vezes para que emitissem uma nota de repúdio contra o Brasil, e a
instituição se recusava alegando que era um problema bilateral. Finalmente, numa
reunião simbólica, produziu uma nota muito morna.
O Parlamento Europeu votou contra o Brasil, é verdade, mas o fez com um
quórum de menos de 8%! Aliás, a maioria dos que apoiaram a moção (46 dos
mais de 700) eram italianos, de diversos partidos neofascistas.
JUSTIÇA PROXY
O relator não atua como um juiz que está processando um cidadão de outro
país dentro do território nacional, mas como um procurador do governo italiano, o
qual, através da pessoa do relator, julga a seu pretendido extraditando. Os exemplos
são inúmeros. Ele disse literalmente:
“O Estado requerente [Itália] é parte neste processo, que, instaurado a seu
pedido, não pode deixar de atender, em certos limites, às exigências do
contraditório” (?)
Ou seja, Itália é mais que requerente. É um componente do próprio tribunal.
Um fato insólito que, até onde eu pude pesquisar em processos internacionais,
não possui antecedentes, é que o relator consultou ao governo de Itália sobre todos os
pedidos da defesa de Battisti, especialmente os relativos a sua liberdade. Ele acatou as
“decisões” da Itália, salvo uma, onde esta pedia liminarmente a anulação do refúgio.
DEFINIÇÃO NON SENSE
O relator pretendia acusar Battisti de ter cometido crime hediondo, já que
terrorismo, tráfico de drogas, crimes contra a paz, crimes de guerra, e atos contrários
às Nações Unidas não podiam ser aplicados, salvo forçando a situação a um limite
extremo. Entretanto, como fez notar a ministra Carmen Lúcia, na época dos crimes,
nem o próprio Brasil tinha definido o conceito de “crime hediondo” que, aliás, é muito
típico do país e precisa “tradução” a outras situações.
O relator resolve com uma tautologia, que vou escrever simplificada: “Não se
pode dar refúgio ao autor de um crime hediondo porque os crimes hediondos são tão
repulsivos que seus autores não merecem ser refugiados”.
LEI DE ANISTIA
O relatório não leva em conta que Battisti está sendo julgado no Brasil, por leis
brasileiras. Se fosse o correto que o destino do extraditando seja decidido pelo país
requerente, então o único sensato seria entregar o réu a Itália de maneira sumária,
sem nenhuma deliberação.
Ora, se o julgamento se faz de acordo com os padrões jurídicos brasileiros, se
deve ter em conta que no Brasil houve, a partir de 1979, várias leis e decretos
vinculados com anistia, e uma anistia constitucional totalmente abrangente. Se o
relator considera que esse instituto legal carece de valor, deveria ser mais coerente.
Por que não pede o processamento de vários membros do governo que
estariam em situações similares (de anistiados) e até mais duras que a de
Battisti?
PORCO VERMELHO
Já falamos do ceticismo do relator sobre os abusos aos direitos humanos na
Itália. Não vamos insistir nesse ponto. Entretanto, quero chamar a atenção sobre um
fato que me parece falta de informação.
Em nenhum momento o relator se manifesta (como é indicado pela escritora
Fred Vargas nas chamadas “13 perguntas”) sobre a organização policial‐fascista DSSA,
que tinha um plano para seqüestrar Battisti. Esse plano se chamou Porco Vermelho,
uma forma chula de se referir a um membro da esquerda.
Será que o sequestro de uma pessoa não é um ato de perseguição contra ela?
Conclusões
1. O julgamento de Cesare Battisti na Itália, cuja sentença foi
publicada em 1988, está baseado em ausência de provas, dez
testemunhas (dentre elas crianças e doentes mentais) que não
testemunharam nada significativo, dois delatores, a
confirmação de outros delatores menores, e confissões de
outros réus extraídas sob tortura.
2. Mesmo não sendo Battisti o culpado, os que realmente
cometeram esses assassinatos são criminosos políticos, não
comuns. E se Memeo, Mutti, ou qualquer um deles estivesse no
Brasil, tampouco deveriam ser extraditados.
3. Crimes como os que se atribuem a Battisti e até outros mais
graves foram anistiados no Brasil, e cabe, portanto, a mesma
atitude agora, por um critério elementar de isonomia.
4. Em casos análogos ao de Battisti (Medina, Falco, e italianos das
Brigadas Vermelhas), talvez até alguns deles mais graves, foram
negadas as extradições.
5. Existem advogados prestigiosos que afirmam que as penas
aplicadas a Battisti estão prescritas. Portanto, caberia considerar
essas opiniões.
6. Battisti é uma pessoa plenamente re‐socializada, que publicou
livros, organizou edições de revistas, realizou exposições de arte,
editou jornais, fez trabalho comunitário. Não se diz que a
punição é para re‐socializar o réu e não para vingança?
7. Esta ação de extradição deveria ter sido arquivada
sumariamente. O Brasil está sendo exposto a interesses
espúrios, a atos humilhantes e está sendo usado como
experiência piloto para derrubar o direito de asilo/refúgio em
toda América Latina.
LEMBREMOS
O Caso Battisti se reveste de uma enorme importância,
porque todo o esforço que está sendo feito por alguns
fatores de poder (judicial, mediático, político, etc.) para
extraditá‐lo, é uma amostra clara da decisão de sabotar
totalmente as estruturas democráticas, de acabar com a
tradição humanitária que o Brasil sempre teve, e de
impor um regime de autoritarismo, de falta de direitos,
de arbítrio absoluto. Apesar de envolver uma pessoa só,
este caso tem implicações para milhões de brasileiros e
para toda América Latina. Através deste julgamento, se
procura atacar o asilo político e as tradições de
tolerância em todo o continente, e se pretende tornar
ainda maior nossa dependência de potências
autoritárias e prepotentes, que tratam o resto do
mundo como seus escravos.
Apêndice
O Caso de Olga Benário
Quando a polêmica sobre o caso Battisti atingiu seu máximo, na metade de
2009, numa época em que a manipulação da Itália no STF parecia muito bem sucedida,
começaram a aparecer as comparações entre o caso Battisti, e a extradição, durante a
década de 1930, da militante comunista Olga Benário, que foi entregue aos nazistas
estando grávida e assassinada em 1936.
A comparação não gostou muito aos mesmos políticos e magistrados que
propagavam o ódio contra Battisti, porque o caso Benário foi o fato mais vergonhoso e
a mácula mais indelével da política brasileira de todos os tempos.
Ninguém gostava ser considerado um admirador de Getúlio Vargas nem de
Flinto Müller. Aliás, aqueles que acreditam que sua alma viverá para sempre, sentiam
mal‐estar ao pensar que a eventual extradição de Battisti podia criar um herói eterno,
como aconteceu como Olga Benário, sobre a qual se escreveram milhares de páginas,
foi rodado um filme de muito impacto, e ficou inclusive na memória das pessoas
menos informadas como expoente da canalhice do Estado Novo. Salvo alguma figura
medíocre remunerada por grupos de ultra‐direita, ninguém teve coragem de sujar
aquela história.
Então, para alguns inquisidores, a idéia de olhar desde os céus dentro de 50 ou
100 anos, e ver‐se no triste papel do carrasco que mandou Battisti à morte, poderia ser
inquietante. Portanto, a comparação Benário/Battisti nunca foi discutida e os aludidos
preferiram ignorar.
Mas, vamos ser objetivos e a observar suas muitas coincidências.
A mentalidade fascista de Vargas parece, atualmente, um fato que nem faz
sentido discutir. Seu violento conflito com o Integralismo foi uma “divisão de
território”, como a que existiu entre Perón e os nazistas argentinos tradicionais em
1945, porém mais cruenta. A posterior aliança do ditador com os aliados para
combater o Eixo tampouco desmente o fascismo de Vargas. Era óbvio que os Estados
Unidos não iam tolerar a neutralidade do Brasil, sendo que mal conseguiam tolerar à
da Argentina, um país muito menos estratégico.
Então, Vargas, apesar de sua política oportunista, foi um ‘moderado’ fascista e
não podia ignorar a violência que existia na Alemanha logo após do fim da República
de Weimar. Por outro lado, Vargas era um ditador, e o Supremo Tribunal Federal lhe
obedecia, como se fosse mais um ministério. Se alguém tivesse tido liberdade para
criticar o Supremo, seus juízes se poderiam ter‐se protegido, aduzindo sua
incapacidade para desobedecer a Vargas. Afinal, ser covarde não é bom, mas pode
produzir certa compaixão. Já ser sádico é mais difícil de justificar, até porque os
sádicos são socialmente uma minoria.
Entretanto, se quisermos fazer o papel de advogados do diabo, e fizéssemos
abstração do fascismo de Vargas, e imaginássemos que esses fatos aconteciam em
outros países (por exemplo, Chile ou Venezuela), poderíamos argumentar que em 1935
não era totalmente clara a crueldade do nazismo.
Ninguém está tentando justificar o nazismo! Simplesmente, assinalamos que a
imagem do nazismo começou a ser mundialmente clara depois que os efeitos na Noite
dos Cristais ficaram conhecidos no mundo todo.
Aliás, até 1936, mesmo judeus alemães cultos, amplamente informados, não
acreditavam que o extermínio seria total. Em 1934, por exemplo, Heydrich, o
açougueiro de Praga, ainda mantinha relações sociais e familiares (muito mornas), com
seu primo afastado Hans, que estava casado com uma judia.
Os campos de concentração eram conhecidos como locais brutais, mas havia
certa confusão em torno deles. Mesmo o cinegrafista alemão, Ingmar Bergman, de
cuja inteligência não é fácil duvidar, e que tinha, como todo escandinavo, informações
atualizadas do que acontecia na Alemanha, acreditava que os Lage eram lugares de
reeducação, e chegou a levar a sério aquela frase cínica dos nazistas O Trabalho Faz
Livre.
Mesmo depois do genocídio de milhares de crianças deficientes em outubro de
1938, o mundo não entendia corretamente o dimensão da crueldade nazista. O
Ministério de Saúde usou gases pouco perceptíveis, e os pais das vítimas receberam
cartas onde o Reich contava que suas crianças tinham morrido de suas próprias
doenças, e mandava indenizações e pêsames.
Sabemos que Vargas, tanto como os Integralistas, conheciam a barbárie do
nazismo, mas o ditador poderia ter argumentado não ter certeza de que Olga ia ser
executada. Aliás, sendo que seus principais inimigos eram os comunistas, Vargas
poderia ter pensado: “Vou banir do Brasil estes inimigos!”. Ele podia ter aduzido que
Alemanha, por ser a nação de Olga, era o lugar natural.
Tudo bem; sabemos que nada disso foi verdade, e que Vargas foi um demagogo
frio! Mas, ele poderia ter‐se defendido dessa maneira.
Brasil, 2009. Não temos uma ditadura. Quaisquer que sejam seus defeitos, o
governo atual é um dos mais populares do Continente.
O STF não esta sendo pressionado pelo governo para extraditar Battisti.
Exatamente, o contrário. O governo, aderindo a suas obrigações internacionais como
assinante da Convenção de Genebra, está dando a Battisti toda sua proteção.
É verdade que o STF está sim sendo pressionado pelo governo de Itália, mas,
mesmo um internacionalista radical como quem escreve, se pergunta: “Será que é
justo que um tribunal de um país obedeça linha por linha a um governo estrangeiro?”.
Quando as conseqüências. Já falamos nos capítulos anteriores sobre os riscos
que corre Battisti. Se eles quiserem matá‐lo, não haverá nenhum problema. Itália não
tem assinado o convênio contra tortura, tem retificado recentemente o acordo contra
a pena de morte, está pouco interessado em dar uma imagem humanitária. Não foi
que Pinelli caiu de um 4º andar de uma delegacia? Por que Battisti não pode cair do 6º
andar de um presídio?
Pode argumentar‐se que não se pode comparar a Alemanha nazista com a Itália
de Berlusconi. Entretanto, a vida de pessoas individuais não depende de condições
macroscópicas. A Itália de Mussolini não conseguiu fazer nem uma fração das vítimas
que fez Hitler, mas, se observarmos a quantidade de derrotas sofridas pelos exércitos
do Duce, e sua incapacidade para lidar com problemas simples, esse menor volume
demassacre talvez não deva ser atribuído a uma mentalidade mais humanitária.