Blog I'unitá Brasil

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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

OS CENÁRIOS INVISÍVEIS DO CASO BATTISTI - Um resumo do livro de Carlos Alberto Lungarzo

Por que a Extradição de Battisti Seria um Crime de Lesa
Humanidade




A Itália de Battisti




A. Europa Depois da Segunda Guerra

CESARE BATTISTI nasceu em 1954, perto de Roma, e passou sua adolescência
durante os dinâmicos anos 60, que foram anos de grandes conflitos no Oriente, na
América Latina, na África, e também na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial
(1945), o Continente Europeu emergiu como o grande centro do humanismo mundial e
também da paz e a prosperidade. Por isso, é difícil para as gerações mais jovens
entender que, mesmo depois da guerra, essa região esteve assolada pela violência.
A verdade é que os setores conservadores de todo o mundo se assustaram pela
libertação dos povos africanos, pelo surgimento de novas nacionalidades, pelo avanço
dos países chamados socialistas e, sobretudo, pela Revolução Cubana (1959). Este
medo produziu reações violentas, como a de criar operativos para combater, em
qualquer lugar do mundo, toda tendência suspeita de ser de esquerda. Esses
operativos foram tão violentos que produziram uma reação da esquerda também
violenta. Num desses grupos esteve Cesare Battisti, a figura principal deste texto.
Este ativista político italiano (e atual escritor) era apenas mais um entre
milhares de outros jovens que lutavam por um mundo menos autoritário, quando foi
detido no Norte da Itália em 1979. Com ele, porém, aconteceu algo especial, incomum
nos outros garotos perseguidos: o governo italiano o acossou durante 30 anos, na
Itália, na França e agora no Brasil, transformando sua vida numa interminável corrida
que ele relata com um talento literário ainda não devidamente reconhecido (por que
será?) em seu romance autobiográfico Minha Fuga Sem Fim (São Paulo, Martins
Fontes, 2007).
Meu objetivo é tentar entender os motivos desse ódio desmesurado dos
políticos, diplomatas e outros membros do establishment italiano, e também a
inconcebível e indigna subserviência com que muitas celebridades brasileiras se
colocam de joelhos perante aqueles famélicos cães de caça. Desejo, aliás, analisar
todos os erros, distorções e fraudes que encontrei nos processos em que Battisti foi
julgado, tanto na Itália quanto no Brasil. Ou seja, desejo ajudar a esclarecer‐se aos que
se interessam pela verdade sobre este intrigante ponto: por que uma pessoa contra a
qual não existe nenhuma prova (nenhuma, no sentido jurídico, social e científico da
palavra) já recebeu quatro votos em contra de um tribunal que deveria zelar pela
verdade, a justiça, a objetividade, o progresso e a paz. Sim, a paz. Porque formas cada
vez mais cruéis e arbitrárias de revanchismo e “vendettas” tornarão a paz social
impossível, seja nas Américas, seja na Europa.
Começarei descrevendo como foi o ambiente onde Battisti (e muitos outros
milhões de jovens) cresceram, tanto na Europa como na América, intoxicado pelo
chumbo dos militares e policiais, pelas ladainhas dos místicos da violência, e pela
corrupção das máfias e dos políticos.

VENCEDORES COM MEDO

Depois da derrota da Alemanha na Guerra, a maioria da direita européia
desejava participar de eleições e manter‐se dentro da legalidade democrática. Mas
essa vocação democrática era limitada. Tanto os americanos como muitos de seus
aliados europeus temiam que a esquerda pudesse avançar. Esse avanço era
indesejado, mesmo que acontecesse por métodos democráticos.
Este ponto deve estar absolutamente claro. É uma verdade histórica irrefutável
sobre a qual foi desclassificada, nos últimos cinco anos, farta documentação. EEUU e
seus aliados não temiam apenas uma revolução: eles combatiam qualquer forma de
sistema político independente, e o destruiriam pela força onde pudesse aparecer.
No Reino Unido, na Holanda e nos países Escandinavos, onde a desigualdade
social era baixa, já existiam democracias sólidas, com as que a esquerda podia conviver
sem conflito. Espanha seguia dominada pelo fascismo, colocado agora ao serviço dos
americanos, e a Alemanha estava sob controle dos vencedores, que proibiram os
partidos de esquerda em 1949. Então, os lugares mais críticos eram a Itália e a França.

ESQUERDA E DIREITA NA ITÁLIA

Em julho de 1944, quando a resistência italiana já tinha liberado o território
italiano do fascismo, as forças democráticas vencedoras editaram o Decreto Legislativo
159 de Sanções contra o Fascismo, mas sua implementação prática foi demorada, pois
a região sofria as catástrofes do pós‐guerra (miséria, caos, doenças), e o governo tinha
como prioridade evitar uma crise humanitária completa. A tarefa de punir os fascistas
ia ser complicada e colocaria um desafio adicional, já que conservadores,
monarquistas, católicos e outros direitistas, se opuseram ao decreto.
No entanto, primeiro ministro seguinte, Ferruccio Parri, membro da
Resistência, apoiado por todas as forças não conservadoras, organizou uma purga com
base no decreto 159 em junho de 1945. Essa purga foi muito difícil, pois o fascismo
tinha apoio na classe média que se beneficiara com a corrupção, nas famílias
tradicionais, e em todos os que o combateram por obrigação. Mesmo assim, o governo
demitiu a maioria dos funcionários fascistas, e colocou em prisão os que tiveram maior
cumplicidade. A indignação provocada pelos atos criminosos, cruéis e doentios dos
fascistas promoveu uma irreflexiva campanha de condenações à morte, que colocaram
na beira da execução 50 mil pessoas.
Um ano depois, o célebre líder comunista, então ministro da justiça, PALMIRO
TOGLIATTI (1893‐1964), concedeu uma ampla anistia, transformando as condenações
em penas de prisão, o que satisfez a tradição humanista do marxismo contrária à pena
de morte. Entretanto, o governo foi incapaz de fazer cumprir as sentenças de prisão, e
os fascistas foram liberados e voltaram a seus postos de funcionários públicos.
Depois da Guerra, a força política mais importante da Itália foi a Democracia
Cristã (DC), o partido oficial da Igreja Católica, apoiado pelos serviços secretos
americanos. Recrutou muitos filiados de origem fascista, mas depois começou a
desenvolver uma política mais ampla, se aproximando ao Partido Socialista (PSI), e até,
parcialmente, ao Partido Comunista (PCI). A DC teve o controle da política italiana até
os anos 80, e depois manteve muita influência até os 90, quando os grandes casos de
corrupção a levaram sua dissolução.
Desde o fim da Guerra, a maioria dos fascistas não se conformava com o novo
sistema democrático e, aos poucos, foi organizando novos partidos. Os principais
foram o Movimento Social Italiano (MSI), fundado por fascistas históricos em 1946, e
autodissolvido em 1995; Avanguardia Nazionale (Vanguarda Nacional, VN) fundada
em 1960 pelo famoso terrorista STEFANO DELLE CHIAIE e dissolvida pela justiça em 1976;
e Ordine Nuovo (Nova Ordem, ON) fundado em 1969 por dissidentes do MSI que
reclamavam a volta ao fascismo tradicional e ao nazismo. Um grupo menor, mas com
enorme capacidade terrorista estava formado pelos Nuclei Armati Rivoluzionari
(Núcleos Armados Revolucionários, NAR), fundado em 1977 e dissolvido em 1981. Foi
uma constelação de pequenas células que cometeram dúzias de assassinatos.

O PARTIDO COMUNISTA NA ITÁLIA

O Partido Comunista Italiano (PCI) saiu da guerra com grande prestígio, devido
a seu papel vital na luta contra o fascismo. Sua popularidade impedia que a direita
pudesse excluí‐lo abertamente, porque, além disso, mantinha milhares de pessoas
armadas. Portanto, o governo, a CIA e a OTAN agiram devagar. Em 1947, o governo de
direita expulsou todos os ministros do PCI e do PSI.
Enquanto isso, ambos, unidos, ganharam várias eleições municipais, o que os
iludiu sobre um possível triunfo nas eleições nacionais de 1948. Entretanto, os Serviços
Secretos dos EEUU e o clero católico enviaram mais de 10 milhões de cartas proibindo
votar pela esquerda. Por isso, a DC ganhou 48% dos votos e a Frente da Esquerda só
31%. Depois disto, o PSI encolheu e o PCI ficou como principal oposição, com grande
presença no parlamento, alguma presença na magistratura e nenhuma no governo.
Em 1976, o PCI obteve 34,4% nas eleições, e procurou aliança com a DC. Seu
presidente, ALDO MORO, que era mais lúcido e negociador que outros líderes aceitou o
Compromisso Histórico, que significava permitir ao PCI ter ministros no governo da
DC. Até 1970, não era conhecida na Itália o que depois se chamou “ultra‐esquerda”.

Até finais da década de 60, antes dos grandes atentados terroristas da
direita, o PSI e o PCI eram as únicas forças de esquerda da Itália.

O CAVALO DE TRÓIA NA OTAN

A força do PCI preocupava aos aliados desde os anos 40, mas em 1965, EEUU e
a NATO estavam na beira do pânico, pois se calculava que 4,3% da população adulta
italiana estava filiada ao PCI, o que o fazia o maior partido comunista ocidental. Os
americanos e britânicos idealizaram planos para destruí‐lo. Além disso, o ódio pelo PCI
foi atiçado pela Igreja, que se incomodava com a pregação social e naturalista do
marxismo, além dos aspectos estratégicos. Mesmo com toda a direita contra, o PCI
teve sucesso durante vários anos, e inclusive prestou apoio a coalizões de centroesquerda,
mas nunca voltou a ser admitido no governo. Seus triunfos mais
importantes foram nas regiões cultas e industrializadas do centro e do norte do país.
No começo do pós‐guerra, a direita e os social‐democratas acreditavam no
perigo vermelho, inclusive numa invasão soviética ao Oeste, e propuseram uma aliança
contra a URSS, e contra a esquerda dentro dos países da Europa, especialmente na
França, na Itália e na Alemanha. Com esses objetivos foi fundada em 1949 a
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN ou NATO, em inglês), que incluía
EEUU, Canadá e os países não neutrais da Europa Ocidental, e cujo objetivo oficial era
o combate aos soviéticos e seus aliados. Seu objetivo verdadeiro era a destruição de
toda a ideologia comunista, mesmo em Ocidente e ainda que fosse pacífica.
Outro instrumento de guerra do bloco foi a Central Americana de Inteligência
(CIA), que já tinha sido criada em 1947 com funções oficiais de espionagem, mas, em
realidade, incumbida de ações paramilitares, sabotagem, insurgência, rebeliões e tudo
aquilo que pudesse prejudicar países, grupos ou pessoas de ideologia comunista. Em
cada país, a CIA manteve uma forte aliança com redes terrorista de direita, que tinham
sido criadas pelos britânicos e os americanos durante a Guerra (como um instrumento
contra os nazifascistas), mas que agora eram independentes.
Desde o final dos anos 40, a CIA junto com a NATO organizam exércitos
clandestinos em todos os países de Europa, incluindo os neutros, em alguns casos com
base na ajuda sigilosa de militares locais sem conhecimento dos governos. Em outros,
como Itália, teve apóio de altas figuras do governo, da polícia, da política, da Igreja,
dos serviços secretos, da máfia, dos neofascistas e das empresas. O objetivo geral
desta rede de paramilitares era coordenar a ação violenta, na forma de atentados a
bomba, repressão de operários e estudantes, incêndios, assassinatos e outros atos
violentos transformando‐se num verdadeiro terrorismo de estado. Estes eram
dirigidos, às vezes, contra a esquerda, mas, em outros casos, afetavam a população em
geral, para que esta pensasse que os autores eram comunistas. Esta rede de ação
violenta coordenada pela CIA e a OTAN tomava diversos nomes em cada país, mas foi
conhecida internacionalmente como a Super‐OTAN.

Contudo, o apelido mais célebre foi o da sucursal italiana. Gládio foi o mais
poderoso, organizado e letal dos operativos do terrorismo de estado na Europa.

A REVOLUÇÃO DO MAIO DE PARIS

A grande revolta de estudantes, profissionais, intelectuais e operários de Paris
em maio de 1968 é muito importante para entender a mudança da esquerda em toda
Europa. Na época, jovens como Battisti (que tinha 24 anos) foram influídos pelo clima
de desafio, criatividade e luta dessa geração francesa.
O processo começou com um conflito entre as autoridades e os alunos de uma
sede da Universidade de Paris, que foi fechada em 03/05/1968. Em resposta,
estudantes dessa e outras sedes, bem como alunos da escola média e professores e
intelectuais de todos os níveis, se uniram aos protestos, chegando a reunir mais de 20
mil pessoas, que resistiram durante dias os ataques da policia. A detenção de centenas
de estudantes e a extensão da repressão incubaram uma das mais fortes relações de
solidariedade entre os intelectuais e o movimento operário. No dia 10 de maio,
quando a polícia feriu e arrestou numerosos manifestantes, novos grupos se
incorporaram ao movimento, incluindo artistas e celebridades em geral.
Naquele momento, se percebia já a táctica de provocação que depois viraria
sistemática: mercenários ao serviço da polícia incendiavam veículos para botar a culpa
nos manifestantes. O Partido Comunista, junto com a Central de Trabalhadores, se
colocou junto aos setores de centro, procurando diminuir o impacto do protesto e
tentando uma negociação. Entretanto, o movimento de esquerda era espontâneo, e
atraiu milhões de pessoas, incluindo massas de operários, que declararam a maior
greve já vista em Ocidente.
Sempre ficou o sentimento de que o movimento esteve perto da tomada do
poder, e de que não teve sucesso pela falta de um partido representativo realmente
marxista. Mas aquela revolta influiu de maneira decisiva na cultura européia. A nova
esquerda não reclamava apenas melhores condições materiais, mas novas ideologias e
novas sensibilidades, desafiando os tabus de nacionalismo, hierarquia, dominação de
classe, restrições sexuais e tudo o que impedisse a felicidade.

Este feito, lembrado como um dos maiores movimentos de massa da história,
mostrou aos milhões de jovens a necessidade de uma esquerda real e humana.
Daí sairá a motivação libertária para outros movimentos, especialmente na
Itália.

B. Estratégia de Tensão

Muitas pessoas sabem provocar tensão. Mas, o que é uma estratégia de
tensão, ou seja, um método para gerar tensão intensa e duradoura? Num testemunho
proferido sob juramento num inquérito sobre terrorismo na Itália, o agente do Gladio
Vincenzo Vinciguerra (n. 1949), fanático fascista e eficiente autor de atentados, explicou
o que era a Estratégia de Tensão:

"Você deve atacar civis, gente comum, mulheres, crianças, gente inocente,
desconhecidos alheios a qualquer atividade política. A razão é simples: dessa maneira,
você força os cidadãos a exigirem do estado maior segurança. (Março, 2001)"

Este fragmento descreve a Estratégia de Tensão com objetividade, em forma
fria e sem enfeites. O que a OTAN mais desejava era evitar que a esquerda
(inicialmente, PCI) pudesse entrar no governo ou influir desde o Parlamento. O
objetivo clandestino principal era substituir os governos “democráticos” por ditaduras,
e o método principal era a Estratégia de Tensão (ET)
A expressão Strategia della Tensione foi mais conhecida na forma italiana. A ET
visava promover atos terroristas massivos, com a mais destrutiva tecnologia: explosões
em edifícios, praças e trens, chacinas em locais públicos, e catástrofes similares.
Entretanto, a ET tinha também uma sólida teoria, um planejamento detalhado, uma
estrutura tão estável e secreta que ainda hoje não sabemos se segue sendo usada.
A alma da tensão se compunha de várias estratégias parciais, todas com um
mesmo objetivo: controlar a opinião pública ao extremo de provocar nela aquele
pensamento: “Estamos em perigo. Precisamos de um governo forte”. Mas, como se
conseguiu essa manipulação?
A ET na Europa agiu de maneira muito inteligente. O envenenamento da
opinião pública foi realizado com parcimônia, de maneira cientificamente calculada,
usando a grande mídia. Mas, essa campanha de propaganda foi apenas uma parte da
guerra psicológica apoiada na estratégia de tensão. A parte de maior efeito foi o
terror, exercido em vários níveis: um grau leve, através de provocações (como a
infiltração de policiais numa passeata), em graus maiores, por meio de assassinatos,
incêndios e violência limitada e, no cume, violência total: bombardeios com explosivos
militares, em locais densamente freqüentados por civis inocentes, como Vinciguerra
explicava aos investigadores.
Os ataques terroristas da ET foram realizados sempre sob falsa bandeira. Os
executores convenciam aos cidadãos de que os autores pertenciam à esquerda. Às
vezes, ligavam a jornais e canais de TV se identificando como membros de um grupo
marxista. Outras vezes deixavam falsos rastos (crachás, documentos, panfletos) que
pareciam do partido comunista ou de um grupo anarquista.

Gerar atentados que matavam pessoas inocentes só era tolerado em sociedades
com governos sem escrúpulos. O histórico fascista, a tradição supersticiosa e o
clima de vingança faziam com que isso fosse possível na Itália.

Note que esses auto‐atentados foram detonados em outros países da Europa
de maneira episódica, e com volume baixo de destruição, geralmente sem vítimas.
Durante dois séculos, os Estados Unidos alentaram os golpes militares em toda
América Latina, e mantiveram estrito controle sobre as ditaduras instaladas por eles. A
ET pretendia instalar também ditaduras na Europa. Mas a população européia tinha
avançado bastante na defesa de seus direitos e não ia aceitar facilmente. Contudo, a
Casa Branca conseguiu dar um golpe na Grécia, em 1967, apesar de que o povo opôs
uma enorme resistência e os setores esclarecidos do planeta ajudaram os gregos a
combater o fascismo.
Todavia, um golpe na Europa moderna era mais difícil, mas a Super‐OTAN
decidiu tentar. Num país com passado fascista, como a Itália, parecia ser mais fácil que
em nações muito civilizadas como Holanda ou Noruega. Se fosse criada a necessidade
psicológica do golpe, sua aceitação seria facilitada. A ET aplicada através do Operativo
Gladio ia provocar numerosos atentados terroristas que levariam à população ao
desespero.
Desde 1948, na Itália, toda a direita, fascista ou não, queria evitar o
crescimento da esquerda, mas temiam que o PCI mobilizasse sua força defensiva. Até a
década de 70, os comunistas não deram sinais de desgaste e sua relação com a URSS
continuava preocupando. Apesar disso, só os setores mais ofuscados dentro da Itália
consideravam seriamente um golpe. De fato, alguns projetos de golpes foram
abandonados, e até setores da própria CIA se manifestaram contra. Aparentemente, a
insegurança da população não tinha atingido o ponto limite previsto na ET.

C. Operativo Gladio

O Operativo Gladio (OG) foi conhecido por este nome a partir dos anos 50, e a
responsabilidade pela instalação de uma rede internacional clandestina de terrorismo
de alto impacto foi compartilhada com vários governos. Alguns pareciam ignorar que
seus militares e policiais tinham implantado um estado paralelo, outros suspeitavam e
fizeram denúncias, outros colaboraram, como aconteceu com a Itália. O termo
“Gladio” ficou finalmente só para referir‐se ao operativo terrorista nesse país.
O número total de recrutados é desconhecido. Os órgãos de captação eram
agências da CIA ou instituições militares dos países hospedeiros, onde cooperavam os
oficiais de alta patente. Na Itália, altos militares se envolveram com o OG e, quando se
despertava alguma suspeita, eram licenciados, transferidos a outros países ou mortos.
Os nazistas e fascistas usados para ação direta eram antigos combatentes,
paraquedistas, operadores de veículos pesados, etc. Os jovens suboficiais da SS e do
Fascio do final da guerra, tinham entre 50 e 60 anos na década de 70, e estavam em
posição de comando. Mas, os menos experientes (entre 25 e 45 anos) eram treinados
com métodos combinados da CIA, das SS e dos fascistas.
No caso da Itália, foi muito claro que parte dos poderes públicos era consciente
do objetivo real: desprestigiar, enfraquecer e destruir a esquerda. Entre os mandos
militares a expectativa do golpe foi bem vinda. O Gladio teve entre seus fundadores o
diretor da CIA, Allen Dulles, algumas fontes acreditam que o verdadeiro fundador, que
deu seu nome e propôs o esquema inicial, foi o democrata cristão ALDO MORO, cujo
assassinato pelas Brigadas Vermelhas em 1978 deixará para sempre a dúvida. O
passado fascista de Moro faz a conjetura mais ou menos provável.
Os principais atos de terrorismo do OG estão mencionados mais na frente, de
maneira breve. Entretanto, cabe adiantar que, depois que esses atos começaram a ser
investigados, mesmo que fosse com pouco entusiasmo, a existência do OG ficou mais
exposta. Entretanto, só recentemente (1991) se teve uma dimensão aproximada do
compromisso de políticos, militares, policiais, agentes do serviço secreto, magistrados,
empresários e outros “chefões” italianos com as ações de terrorismo de estado. O
assunto veio a tona quando o tríplice (por três períodos) ex‐primeiro ministro GIULIO
ANDREOTTI, uma das figuras mais influentes da DC confessou a existência daquele
aparato.

Estes atos foram atribuídos sistematicamente à esquerda, favorecendo a
tendência popular ao linchamento, e intimidando aos comunistas para que se
deslocassem ainda mais à direita, o que aconteceu em poucos anos.

Desde há pelos menos cinco anos, a existência do OG e sua responsabilidade
pelos grandes atos de terrorismo na Itália não é nenhum mistério. Existem não apenas
fontes de pesquisadores sérios, mas numerosas matérias de divulgação publicadas na
Internet, algumas delas em português e espanhol. Seus aspectos básicos são
absolutamente evidentes: (1) O OG foi responsável por quase todos os assassinatos
massivos, salvo alguns reivindicados por grupos fascistas independentes. (2) Nenhum
desses atos foi praticado por grupos de esquerda, mesmo os mais exaltados como as
Brigadas Vermelhas, que cometeram assassinatos individuais ou provocaram
explosões onde o número de vítimas foi pequeno. (3) Apesar da cooperação da CIA em
todos os aspectos, o planejamento e execução foram compartilhados com agentes
italianos, altos oficiais das forças armadas e de segurança e altos funcionários.
Não é tão esquisito, porém, que a opinião pública italiana pense, em grande
parte, que os autores dos crimes pertenciam à esquerda. Na Itália, a história de
vendetas e a força de persuasão da Igreja contribuem ao êxito desse mito.
É importante destacar que a atribuição dos atos do OG à esquerda não teve
tanta penetração em setores mais informados. Portanto, não pode supor‐se que os
envolvidos no julgamento de CESARE BATTISTI, no Brasil, ignorem algo tão básico. O que
acontece, como veremos depois, é que existem interesses na condena de Battisti.
O Parlamento Europeu, apesar do empenho de outros países por esclarecer os
atos de terrorismo não pôde avançar muito. Em 22/11/1990, o Parlamento condenou
Gladio e pediu investigações exaustivas e isentas; 19 anos depois, ainda está
aguardando resposta.
Na década de 70, começou a usar‐se a palavra strage, que significa “grande
estrago” e, muitas vezes, massacre. Foi chamado Stragismo o método de cometer
enormes ataques com explosivos. O stragismo era empregado para os grandes
atentados, mas o OG também utilizou ataques específicos contra grupos humanos
como passeatas e atos públicos.
Uma forma de terrorismo mais frequente e menos letal que os stragi era a
repressão direta, onde policiais, agentes dos Serviços Secretos (SSc) e os neofascistas
agiam sem muito mistério, simulando que tinham sido provocados por manifestantes e
queriam restabelecer a ordem. Os os principais ataques
repressivos do ano 1968:

Data:16/03
Evento:Extensas colisões entre estudantes e polícia em Roma. A polícia
bloqueou 5 mil estudantes que protestavam contra a Guerra de
Vietnam, e deixou agir a 400 neofascistas fortemente armados
que conseguiram dispersar os estudantes.
Resultado:Cerca de 100 estudantes
feridos e 34 hospitalizados

Data:17/03
Evento:400 estudantes se reuniram em Piazza di Spagna e marcharam
em direção da Faculdade de Arquitetura. A polícia esperou a
máxima concentração e então atacou com tal brutalidade que
surpreendeu ao público independente. O objetivo não era
dispersar a manifestação, mas produzir o maior número de
baixas.
Resultado:Numerosos feridos não
contabilizados.

Data:18/03
Evento:Intensas rebeliões na Faculdade de Direito em Roma.
Resultados:Numerosos machucados.Sem dados numéricos.
Data:17/03 a 25/03
Evento:Greves de estudantes que se espalharam pelo território nacional.
Extensos choques com a polícia em Milão, onde a Universidade
Estadual foi violentamente desalojada.

O terror massivo típico do stragismo teve sua primeira cena no caso de Piazza
Fontana. Nos dados citados mais abaixo seguinte, damos uma lista dos principais “estragos” durante esses
doze anos de terror. Há muitos outros atentados menos conhecidos. Uma visão ampla
da ação do OG na Europa pode ver‐se no texto de DANIELE GANSER, pesquisador suíço
tido como o melhor especialista na estratégia de tensão e seus derivados.(http://www.globalresearch.ca/articles/GAN412A.html)


Atentados Massivos Executados por Gladio

Data:08/09
Evento:Bombas-Teste em trens
10 bombas de baixo poder foram
colocadas em 10 diferentes trens.
Dessas, 8 explodiram. Estes testes se
repetiram durante o resto do ano.
Autores:Foi acusada a esquerda em geral,
principalmente os anarquistas,
mas a autoria foi de Ordine Nuovo.

Data:12/12/69
Evento:Massacre de Piazza Fontana em
Milão.
Explosivos poderosos foram
colocados na Banca Nazionale dell'
Agricoltura.
Autores:O governo culpou aos
anarquistas. Em 1999, o General
Giandelio Maletti, ex‐chefe de
um SSc confessou que Ordine
Nuovo, filiado ao OG, cometeu o
atentado para culpar à esquerda.

Data:12/12/69
Evento:Bombardeios simultâneos em Roma.
Três bombas foram ativadas ao
mesmo tempo num banco e um
monumento em Roma.
Autores:Mesma situação que no caso de
Piazza Fontana.

Data:22/07/70
Evento:Bombardeio a um trem na Calábria.
Uma bomba explodiu no expresso
Freccia del Sud, na Calábria.

Autores: Grupo fascista MSI?

Data:1972
Evento:Bombardeio de três policiais.
Perto de Veneza, três carabinieri são
atingidos por explosivos deixados
num carro ao atender uma falsa
denúncia.
Autores:Polícia e MP culparam à
esquerda em geral. Algo depois,
Vincenzo Vinciguerra, membro
do OG, reconheceu a autoria do
atentado.

Data:17/05/73
Evento:Ataque a Quartéis da Polícia.
Quartéis da polícia de Milão foram
atacados.
Autores:Gianfranco Bertolli, que se fez
passar por anarquista.
Descobriu‐se que era agente do
SID e membro do OG.

Data:11/73
Evento:Explosão de Aeronave.
Um avião da Força Aérea Italiana
usado pelo serviço secreto explodiu
no ar.
Autores:O General Geraldo Serraville,
chefe do OG entre 1971 e 1974,
acredita que foi uma ação dos
próprios agentes de Gladio.
Datad2
Data:28/05/74
Evento:Massacre in Piazza della Loggia.
Uma bomba foi lançada em Piazza
della Loggia (Brescia), durante uma
manifestação sindical.
Autores:Fascistas e Policiais. Os
instigadores e organizadores
eram membros de alto nível da
OG. O caso foi abafado depois de
muita investigação.
Foi detido Delfo Zorzi, membro
do grupo fascista Ordine Nuovo
em colaboração com outros dois
grupos neofascistas menores.

Data:08/74
Evento:Bomba em Trem Italicus.
Uma bomba foi colocada no trem
Italicus, cujo percurso era Roma‐
Munich.
Autores:Um grupo fascista pouco
conhecido, Ordine Nero,
assumiu neste caso o atentando.

Data:20/08/80
Evento:Estação Central de Bolonha.
Uma bomba explodiu na sala de
espera de 2a classe a Estação Central
Ferroviária de Bolonha. Esta cidade
era um grande bastião eleitoral dos
comunistas e já tinha sido atacada
antes.
Autores:Justiça e polícia acusaram à
esquerda, porém os neofascistas
dos Núcleos Armados
Revolucionários (NAR)
assumiram ter colocado
explosivos de uso militar.

Data:23/12/84
Evento:Trem Bombardeado em Movimento.
Num trem que fazia o percurso entre
Florença e Roma, explode uma
bomba de alto poder.
Autores:Atribuído a neofascistas,
auxiliados pela Máfia e a
Camorra.


D. Resistência e Repressão

Antes que essa repressão chegasse a seu máximo, o stragismo já tinha
produzido resistência, e uma parte importante da esquerda se deslocava do
diálogo democrático para a ação armada.

RESISTÊNCIA ARMADA

A resistência armada existia antes do stragismo, mas era muito moderada e
respondia, salvo em poucos casos, ao aparato de defensa da esquerda parlamentar,
como o PCI. Mas a violência entrou plenamente na esquerda, quando os marxistas
mais ativos, bem como ativistas independentes, descobriram a existência de
terrorismo de direita em grande escala. O caso de Piazza Fontana foi o detonante.
23
Antes daquele strage, já existiam dois fortes grupos de extrema esquerda,
Lotta Continua, fundado recentemente, e Potere Operaio, criado em 1968. Nenhum
deles, porém, praticava ações armadas. Seus atos violentos foram exclusivamente de
autodefesa, durante passeatas ou ocupações de fábricas.
Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas = BV) foi o primeiro grupo político com
fundamentação inspirada no marxismo, que propôs levar adiante a luta armada, e
atingiu as dimensões de um exército de guerrilha urbana.

REPRESSÃO RELIGIOSA

Durante o período da ET, as maiores vítimas religiosas da repressão foram as
Testemunhas de Jeová. Estas formam uma seita afastada da política, mas defendem
um princípio básico de ética individual: repudio do militarismo e de qualquer forma de
violência. As TJ apenas recomendavam o pacifismo a seus próprios membros. Não
faziam passeatas nem levantavam barricadas.
Como Itália teve sempre uma forte tradição militarista e policialesca, os
governos mantiveram o velho serviço militar compulsório e rigoroso, com fortes penas
para refratários, e estimularam a aversão contra qualquer forma de pacifismo ou
tolerância. Mas, por outro lado, os poderes públicos deviam respeitar a objeção de
consciência, pois isso se estava tornando norma internacional. As Testemunhas de
Jeová e outros objetores de consciência eram punidos com serviços civis alternativos
de duração desproporcional e, também com encarceramento e trato desumano por
lapsos de mais de um ano.
Na época, o governo italiano dava prioridade às Testemunhas de Jeová como
hóspedes da prisão de Gaeta, um castelo medieval isolado ao Sul de Roma, que serviu
como presídio militar, cujas acomodações não tinham sido modernizadas desde o
século 14 ou 15. As TJ e outros internos que tinham enviado queixas ao mundo
exterior sobre as condições subumanas de Gaeta acabaram sendo processados com
base em cargos como “divulgar segredos militares” e “difamação”. Segundo o
Relatório de Anistia Internacional de 1977, nessa data a prisão alojaria mais de 200
Testemunhas de Jeová.
24
No relatório de 1979, Anistia Internacional denúncia que os tribunais militares
perseguem aos que recusam fazer um serviço alternativo (não militar) com duração
maior que a legal, e aplicado com intuito punitivo. Cita o caso de Sandro Gozzo, que
serviu 12 meses numa comunidade agrária para pessoas com dificuldades mentais.
Cumprido este prazo, que é o legal, voltou a sua casa. Em janeiro de 1979, foi
sentenciado por um tribunal militar em Palermo, Sicília, a 7 meses de prisão, por ter‐se
recusado a continuar o serviço depois do período legal.
O direito à objeção de consciência se tinha transformado numa farsa, como se
deduz do relatório de 1980 (p. 281) de Anistia Internacional. Os militares deviam
decidir se um potencial recruta podia ser passado ao serviço civil. Eles tinham direito a
afirmar que a convicção filosófica ou religiosa do candidato não era sincera. Inclusive,
era comum exigir provas (sic) de que a pessoa tinha realmente problemas de
consciência para servir militarmente. Como provar?

TRATOS DESUMANOS

Vamos analisar agora os relatórios que Anistia Internacional produziu sobre
Itália entre 1977 e 1981. Os casos de discriminação religiosa (já mencionados acima)
são minoria em comparação com os de perseguição ideológica e política, baseada em
indícios subjetivos “tênues”. No relatório de 1978, se descreve o aumento de grampos
telefônicos sem autorização judicial e a prisão arbitrária de pessoas qualificadas (ao
gosto dos policiais e juízes) de esquerdistas, terroristas, simpatizantes do terrorismo,
vinculados com terroristas e assim em diante. Uma acusação muito usada era a de “ter
conhecimento que Fulano ou Sicrano tinha inclinações terroristas”. Embora os alvos da
perseguição fossem quase todos da esquerda, alguns militantes da direita − que seus
mandantes já não protegiam − também sofreram abusos.
Giovanni Ventura, um militante neofascista abandonado pelo comando do
Gladio, indiciado pelo atentado em Piazza Fontana, permaneceu preso durante 4 anos
sem ser julgado. Em casos de delitos políticos ou de consciência, os magistrados
aumentavam a pena dos réus por métodos bizarros. Por exemplo:
25
Franco Pasello recusou fazer o serviço militar. Como estava decidido, tampouco
tirou documento militar. Foi condenado a 14 meses de prisão por recusar‐se ao
serviço militar, mas, por outro lado, também foi julgado por não ter tirado
documento militar. Neste outro julgamento foi condenado a 12 meses!

Foram frequentes as negativas a dar assistência aos internos doentes, ou a
oferecer proteção contra doenças físicas ou mentais. Em Novembro de 1979, Anistia
reclamou atenção para Alberto Bounconto, mantido em condições péssimas: grave
diminuição dos sentidos, alteração mental, e paralisia que lhe impedia andar ou comer
sem ajuda. Também indagou por outros dois prisioneiros nos quais os tratos
desumanos tinham deflagrado quadros psicóticos, e por outro que estava gravemente
doente, mas não recebeu resposta dos juízes.
AI denuncia (Relatório 1979) a tendência dos juízes, já visível desde o ano
anterior, a punir opiniões sobre política, como se fossem propaganda do terrorismo.
Esta confusão se usava especialmente para punir intelectuais, que não podiam ser
acusados de nenhum envolvimento prático em atos subversivos, mas cujas opiniões
eram de esquerda.
No relatório de 1980, AI assinala que os novos artigos do código penal
incorporados por decreto diminuem os direitos dos cidadãos. Por exemplo, o conceito
de associação subversiva é pouco claro, e deixa a idéia de que também podem ser
processados “subversivos potenciais”, ou seja, pessoas que tenham “tendência” a
cometer atos terroristas.

Em síntese, as leis de 1980 aumentam a já extrema arbitrariedade da
magistratura. Estas leis atuam como normas de estado de sítio, mesmo que se
mantenha um ritual jurídico normal.

No relatório de 1980, AI também denunciou que, desde a aprovação da lei que
garantia poderes desproporcionais à polícia, o estado criou 8 novas prisões onde os
detentos viviam em condições extremas de isolamento e tortura psicológica. Também,
essas novas leis restringiam o direito de reclamar à Convenção Européia sobre os
Direitos Humanos (CEDH). Isto só seria possível depois de “esgotar” todas as
possibilidades dentro da Itália, mas, o poder para definir quando essas possibilidades
estavam esgotadas era exclusivo da autoridade italiana.
Especialmente grave foi a blitz massiva dita de 7 de Abril (de 1979), quando as
forças de segurança detiveram dúzias de pessoas suspeitas de esquerdismo, como
parte das investigações sobre a morte de Aldo Moro.
Informalmente, as delações, premiadas ou não, foram usadas muitas vezes como
únicas provas contra os réus. Frequentemente, quando o delator voltava atrás, o
juiz instrutor se recusava a registrar a mudança e o réu continuava acusado.

No relatório de 1981, Anistia Internacional denuncia a contínua detenção, sem
julgamento, de grupos de pessoas relacionadas com a Autonomia Operária. Na época
deste relatório, houve 69 pessoas indiciadas pelos delitos da Autonomia que foram
encaminhados para julgamento, mas, depois de passados 25 meses em prisão, a data
desse julgamento ainda não tinha sido anunciada.
Anistia Internacional relata que, na grande maioria dos casos de pessoas
detidos por supostas conexões com ações violentas, os vínculos aduzidos pela justiça
eram muito tênues ou inexistentes. As novas leis produzidas entre 1980 e 1981,
autorizam a deter pessoas por suspeitas de terrorismo, ou por entender que seu estilo
pessoal as tornava “favoráveis” ao terrorismo. Um artigo estende o período em que
uma pessoa pode estar detida “preventivamente” por suspeitas ou inclinação ao
terrorismo, até 10 anos e 8 meses. Não houve uma lei tão truculenta durante as
ditaduras da América Latina.
Relata‐se também o caso de quatro réus liberados em 1979 por falta de provas,
que foram novamente detidos em 1981, apesar de que o juiz aceitava que eram
inocentes. Existe um padrão fixo: os juízes não encontram evidência que incrimine os
indiciados, mas quando decide liberá‐los, o Ministério Público entra com nova
denúncia. As apelações dos réus junto aos tribunais superiores são quase sempre
rejeitadas.
27
Anistia Internacional tem manifestado preocupação por julgamentos típicos de
estados militarizados, onde inclusive civis são julgados por cortes militares.

Art & Richardson mostram que a aplicação de tormentos contra os membros
das BV era uma rotina, perfeitamente conhecida pelos magistrados que instruíam os
processos. O SSc da Polícia aplicou diversas formas de tortura aos militantes, mesmo
depois que tinham obtido toda a informação que exigiam.
Parece que não houve mutilações irreversíveis nem “técnicas” que produzissem
dor máximo, e que as torturas mais usadas eram:

�� Privação do sono, luminosidade excessiva, barulho insuportável.
�� Ameaça de mortes contra familiares, especialmente crianças, porém não cumpridas.
�� Chutes na genitália, nas costas, no ventre, no estômago.
�� Arrancar pêlos de regiões sensíveis (não se mencionam os cílios).
�� Queimaduras com cigarros em partes ocultas pela roupa.
�� Choques elétricos de potencial leve a moderado.
�� Afogamento por ingestão forçada de água salgada.
�� Batidas nas orelhas e nas têmporas.
�� Manutenção em posições dolorosas.

Existe esmagadora evidência fornecida pelos mais de 600 refugiados italianos
na América do Sul que deveram fugir do terror oficial na época da ET, sobre a aplicação
sistemática de tortura policial desde a década de 70 até épocas recentes.

O PODER JUDICIÁRIO

Durante a ET, a repressão não era apenas administrada pela polícia nas
delegacias e pelos carcereiros nas prisões, mas também pelos magistrados que
retardavam, ignoravam ou distorciam os processos dos indiciados. Um fato comum era
decretar nova prisão depois que um réu tinha sido liberado por algum motivo razoável
(falta de provas, absolvição, etc.), inventando uma nova acusação.
Relata Anistia Internacional que quatro réus liberados em 1979 por falta de
provas foram novamente detidos em 1981, apesar de ter sido absolvidos. Alguém
detido sobre acusação de “propaganda terrorista”, liberado por falta de provas, podia
28
ser detido em seguida por “mau comportamento durante a prisão anterior” e,
cumprida esta pena, poderia ainda ser incriminado “por ter realizado espionagem
dentro do cárcere” durante a última prisão, e assim por diante.

Battisti e seu Grupo

A. Crise da Esquerda Clássica

Na Itália, a velha esquerda dos guerrilheiros que combateram o fascismo foi
cedendo espaço ao “profissionalismo” político. A principal preocupação das novas
gerações de esquerda vinha da grave situação social e do terrorismo neofascista.
A esquerda tradicional européia conseguiu sobreviver se degradando cada vez
mais ao nível da socialdemocracia e tentando acalmar (sem sucesso) a ira do
neofascismo e a CIA. Nem figuras esclarecidas da direita, como Aldo Moro, foram poupadas quando surgia a possibilidade de que a esquerda, mesmo muito
transformada, pudesse avançar.
9


ESQUERDA ARMADA

A nova esquerda não armada incubou sua ideologia durante a década de 60,
influenciada pelo Maio de Paris. Incrementou as tradicionais reivindicações operárias
com reclamações em prol de outros atores sociais, como trabalhadores da baixa classe
média e camponeses, e de temáticas sociais não puramente econômicas, como o
direito a diversidade sexual, a luta contra o racismo, a ecologia, etc.
Entretanto, os partidos comunistas se esforçavam por conseguir um espaço no
sistema. Para ser admitido como a parte esquerda do establishment italiano, o PCI
precisava acatar todas as normas da legalidade democrática. Essa acomodação ao
capitalismo implicava fazer renuncia do marxismo, que os socialdemocratas já tinham
feito muito antes.
Por outro lado, a nova esquerda européia era marxista. Na maioria dos casos,
seu marxismo não era filosófico, mas sociológico e, especialmente, ético: tratava‐se de
devolver ao ser humano seu lugar na natureza, destruindo as hierarquias e a alienação.
Não se deve confundir as especulações teóricas do marxismo acadêmico, com
atividades culturais concretas desenvolvidas pela esquerda extraparlamentar. Sua
meta fundamental era o resgate da solidariedade, que esteve presente na velha
esquerda desde 1800 a 1950.
Mesmo os grupos da esquerda italiana definidos pela luta armada, não foram,
em seu começo, terroristas. Aliás, a viragem para o terrorismo pode ter sido resultado
de sua infiltração pela direita. Vários grupos armados desempenharam algum tipo de
atividade social, cultural ou humanitária. Os Nuclei Armati Proletari ajudavam a
desempregados e prisioneiros, os Reparti Comunisti d'Attacco criticavam o sistema
penitenciário, e as próprias Brigadas Vermelhas trabalhavam com os operários.
Apesar de tudo, embora seja por outras razões que as levantadas pelo PCI, a
luta armada era uma opção errada. O uso da força degradava à esquerda ao nível
moral dos profissionais da violência: policiais, militares e neofascistas.
30
A luta armada na Itália foi um exemplo de fragmentação. Na década de 70
conviviam mais de 40 movimentos armados de esquerda e possivelmente muitos mais
dos quais não se mantém registro.

AUTONOMIA E PAC

Autonomia Operaia foi um processo da esquerda alternativa, cujo pico esteve
entre 1976 e 1978. Inicialmente, sua organização e propósitos eram totalmente
diferentes dos grupos armados. A democracia interna da Autonomia foi tal que eles
não se consideravam propriamente um partido ou um movimento, mas uma espécie
de nome comum para todas as pessoas que concordassem com um projeto de
esquerda não parlamentar, contrário ao reformismo e à burocracia.

PROLETÁRIOS ARMADOS PARA O COMUNISMO

O que nos interessa é o grupo chamado Proletari Armati per il Comunismo
(PAC), ao qual pertenceu CESARE BATTISTI.
Os PAC estiveram focados nas condições carcerárias e nos desempregados. Foi
fundado na Lombardia em 1976, e estava dirigido na época por SEBASTIANO MARSALA,
ARRIGO CAVALLINA e GIUSEPPE MEMEO.
No outono de 1977, data reconhecida com o ponto máximo nas rebeliões
populares na Itália, os PAC já estavam organizados. Tinha influído em sua criação a
fundação de novos cárceres especiais, onde, além da tortura convencional, os
detentos sofriam pelo isolamento e limitação de movimentos. Assim, eles entravam
numa deterioração física e psicológica, chegando à catatonia total, depois de passar
por meio de dolorosos tormentos mentais.
Contra este sistema prisional, um dos membros dos PAC, ROBERTO SILVI propôs a
publicação de um jornal, chamado Senza Galere (“Sem Prisões”), em torno ao qual se
nuclearam os fundadores do grupo já em novembro de 1977(www.archivio900.it/it/sigle/sigl.aspx?id=788). A primeira vez que o
nome da organização tomou estado público foi em maio de 1978, num manifesto onde
2 Battisti fez esta declaração a um jornalista do magazine brasileiro Istoé:
ameaçava aos “médicos tiras do Estado”. O aviso se referia a médicos que tomavam
conta de presos doentes nos locais de detenção e que atuavam como policiais, tirando
informação dos internos ou lhes submetendo a tratamento degradante.
Os membros da organização eram em sua maioria de origem operária, mas
também havia professores de ensino básico, desempregados e alguns estudantes.
Todos eles eram jovens. O mais velho era ARRIGO CAVALLINA, um professor nascido em
1945, que elaborava a ideologia a ser seguida pelo grupo.
Não se conhece o número exato de militantes, pois o grupo atuava também em
Veneza e talvez tivesse algumas células espalhadas por outras cidades do Norte. Na
reportagem de Istoé feita no Brasil em 2009, Battisti confessava não saber a
quantidade de militantes em todo o país, mas achava que tinha pelo menos 200.
O local de atuação esteve concentrado em Milão e Veneza, onde se
acumularam os militantes mais conhecidos. Os PAC tinham extrações bem diversas.
Tanto os fundadores como os primeiros militantes eram bastante heterogêneos.
Cesare Battisti tinha cometido roubos, Adriano Carnelutti foi um simpatizante e
semicolaborador das BV e Maurizio Folini tinha contatos com os palestinos. PIETRO
MUTTI tinha estado em Prima Linea (PL), que era a segunda maior organização depois
das BV, e fundou‐se com pessoas que se afastaram de Lotta Contínua e Potere
Operaio.
Em oposição ao estilo das Brigadas Vermelhas, que possuíam uma estrutura
semi‐hierárquica e uma disciplina, os PAC se organizaram numa forma descentralizada,
com profunda democracia interna, influídos pelo anarquismo. Aliás, vários grupos,
incluído o PAC, estavam influenciados pela intelectualidade radical francesa.
32
B. Proletários Armados

AS IDÉIAS DO PAC

Quando se formou o grupo, a violência da ET estava em seu ápice; o ano 1977
foi conhecido como “terrível”, pois os conflitos sociais, como greves, protestos,
passeatas, se adicionavam aos stragi da direita e respostas armadas da esquerda.
Foi nesse período, que as prisões italianas começaram a aumentar seu regime
de brutalidade. Recebendo sempre novos prisioneiros, tanto as condições de
sobrevivência como os tratos cruéis se tornaram mais críticos.
Os PAC eram pouco conhecidos. Eles não se propunham a tomar o poder, mas
resolver assuntos do dia‐a‐dia, como confrontar a violência gerada por patrões,
policiais, carcereiros e outros elementos ao serviço da repressão.
Creio que os PAC estiveram influenciados pela parte prática dos escritos de
Michel Foucault: o entendimento da barbárie oficial, justamente aquela que a
academia despreza. Cavallina teve oportunidade de experimentar em sua própria pele
aquela barbárie quando esteve preso em Udine, em 1977, por causa de um roubo que
tinha perpetrado para munir de dinheiro o movimento. É nesse momento que começa
a denunciar as condições infra‐humanas de vida e o sadismo dos guardas.

AS AÇÕES DO PAC

Os PAC tinham este perfil: (1) Organização aberta, sem hierarquias, e restrita a
ações locais. (2) Operativos rápidos com objetivos de curto alcance. (3) Medidas
punitivas contra patrões exploradores, policiais e carcereiros torturadores,
empresários que fizessem parte de grupos de extermínio. Parece que os PAC
conseguiram não ser infiltrados, mas não puderam evitar que alguns de seus membros
se transformassem em delatores.
No começo, o grupo se propôs apenas financiar‐se e munir‐se de armas. Para
formar seu arsenal, o grupo fez assaltos a lojas de armas, e depois passaram a apoiar
operários em conflito, fazendo sabotagens em empresas, que não produziram mortos nem feridos. Naquele período, também “intimidaram” a membros do sistema
carcerário. Em maio de 1978, feriram levemente a três membros desse sistema, um
guarda e dois médicos. Neste caso, concretizaram sua ameaça de “penalizar” os
“médicos tiras” que policiavam ou torturavam seus doentes.

No dia 06/06/1978, começou uma sequencia de homicídios que acabou em
fevereiro de 1979, e deixou quatro vítimas: um carcereiro chamado ANTONIO SANTORO,
o açogueiro LINO SABBADIN, o ourives PIERLUIGI TORREGIANI, e o motorista do serviço
secreto da polícia ANDREA CAMPAGNA.

Os crimes foram reivindicados pelos próprios PAC, em comunicados que
enviaram às autoridades, mas inicialmente existiam dúvidas sobre quais pessoas
deveriam ser culpadas por isso. Entretanto, anos depois (inclusive depois que Battisti
fosse julgado por outros motivos), PIETRO MUTTI, reforçado por alguns outros membros
do bando, acusou a Battisti como culpado principal dos quatro assassinatos. Por causa
disso, Mutti foi recompensado como “colaborador da justiça” recebeu uma grande
redução em sua pena: de prisão perpétua para 8 anos.
3




C. As Quatro Mortes

ANTONIO SANTORO

Antonio Santoro (1926‐1978) era um carcereiro‐chefe da prisão de Udine. O
atentado teria sido executado entre duas ruas de Udine (Isto se encontra na Sentença
de 1988; p. 224 e no Histórico, p. 11), durante a manhã do dia 6 de junho de 1978. O
ataque, supostamente reconstruído pelo Tribunal de Milão graças a delatores, foi com
arma de fogo. A vítima levou dois tiros pelas costas dum jovem que teria fingido estar
namorando uma garota ruiva durante a passagem de Santoro por aquele lugar.
Fala‐se de duas testemunhas, mas não aparecem seus nomes ou descrições.
Eventualmente, estes poderiam estar no inquérito policial, mas nem a própria defesa
de Battisti no Brasil teve acesso a tal inquérito, supondo que ele exista. Os criminosos
foram identificados (p. 226), como sendo PIETRO MUTTI e ENRICA MIGLIORATI.

É importante fixar este dado: durante o primeiro estágio de investigação, o
nome de Battisti não é relacionado à morte de Santoro.


Essas duas testemunhas deveriam tê-lo reconhecido numa sessão de inpeção de fotos
inspeção de fotos, pois Battisti tinha estado preso em Udine e tinha ficha. Mas não
aconteceu assim. Tudo isto ficou no ar até fevereiro de 1982 quando se produziu uma
svolta radicale provocada por Pietro Mutti, agora na condição de arrependido.

Neste, como nos outros crimes, as testemunhas a que se refere a polícia, são
mencionadas vagamente, às vezes sem dizer o nome.

PIER LUIGI TORREGIANI

O ourives Torregiani (1936‐1979) fazia “justiça”, por si mesmo contra pessoas
mais fracas. O influente jornal Corriere della Sera, do dia 5 de março de 2004 faz uma
descrição de um antigo fato.
Na meia‐noite de 22/01/1979, Torregiani janta num restaurante com sua filha
Marisa, quando aparece um assaltante siciliano que pretende praticar um roubo.
Torregiani e um amigo tiram do bolso armas de grande calibre e matam o ladrão e
também um cliente inocente, e deixam outro aleijado. Torregiani nunca foi julgado por
excesso de defesa, nem por ter atingido, por imprudência, duas pessoas inocentes.
Pelo contrário, no dia seguinte, o ourives coloca uma foto na vitrine de sua loja
como troféu da execução do siciliano. O fato foi muito criticado pelos jornais não
fascistas, o considerando uma exibição de crueldade e sadismo. Mas ele foi alvo de um
revide 24 dias após.
Às 15 horas do dia 16 de fevereiro de 1979, Torregiani estava chegando a sua
loja de Milão, com dois de seus filhos (Sentença, p. 435). Em certo momento, dois
jovens que andam a pé, um pouco à frente, voltam‐se em direção a ele e abrem fogo.
O joalheiro tira sua arma e cruza tiros com os executores, mas acaba morto. Um fato
importante: uma bala deixa a seu filho Alberto aleijado. Inicialmente, tentou‐se culpar
os assaltantes, mas finalmente soube‐se que a bala era da arma de Torregiani, o pai.

LINO SABBADIN

Sabbadin (1933‐1979), um açougueiro, membro ativo do partido fascista mais
tradicional, o MSI, foi atingido o mesmo dia 16 de fevereiro de 1979 perto de Veneza,
por volta das 16:50 horas, no local de seu açougue. Sua história é parecida com a de
Torregiani: Na noite de 16 de dezembro de 1978, sua loja foi assaltada por um cara
que falava em dialeto (possivelmente do Sul, ou seja, de províncias pobres). Segundo
as matérias jornalísticas da época, ele recebeu uma coronhada, mas revidou matando
o agressor.
No dia do crime, dois homens entram no açougue e, segundo diz a sentença (p.
435), ambos estavam disfarçados com barbas postiças. Um deles dispara um total de
quatro tiros. Os envolvidos na execução de Torregiani foram reconhecidos como
MEMEO, GRIMALDI, SEBASTIANO MARSALA e FATONE (Sentença, p. 437).
Percebese que aqui também não aparece o nome de Battisti.
ANDREA CAMPAGNA

A morte de Andrea Campagna (1954 –1979), motorista da polícia de Milão tem
a ver com as represálias do grupo PAC contra agentes da repressão. Ele foi morto em
Milão, no dia 19/04/1979, no momento em que caminhava pela rua com seu sogro.
Segundo a descrição contida na Sentença (p. 507), um jovem desconhecido se
aproximou e lhe disparou cinco tiros.
36


O sogro diz que tentou proteger a seu genro, mas em nenhum momento a
polícia fala que ele tenha podido reconhecer o agressor.

Os quatro crimes foram reivindicados em mensagens telefônicos e por cartas a
jornais pelos PAC.
Em suas declarações diziam que Santoro e Campagna eram policiais que
maltratavam os prisioneiros, e Torregiani e Sabbadin eram comerciantes fascistas, que
matavam iniquamente, sem necessidade e com abuso de força, às pessoas pobres que
tentavam roubar‐lhes sem colocar sua vida em risco.
37

Julgado na Itália

A. Battisti é Preso

PRIMEIRO JULGAMENTO

Battisti era filho e neto de comunistas e, quando adolescente, cometeu alguns
roubos, razão pela qual foi preso. Na prisão de Udine conheceu a Cavallina, que estava
lá por um delito relacionado com seu grupo político, PAC. Ele convenceu a Battisti de
que devia entrar nos PAC.
A primeira vez que Battisti foi julgado como preso político, em 1979, os crimes
dos quais foi acusado eram: possuir armas não registradas e associação para cometer
atos subversivos.
Depois da morte de Torregiani a polícia fez uma blitz completa em toda a
cidade. Um dos lugares mais vasculhados foi o prédio popular onde morava Battisti.
Ele foi detido no começo de junho de 1979, por ter sido encontrado numa das guaridas
do PAC na Barona (bairro de Milão), mas até essa data ninguém tinha manifestado
receio de que ele estivesse envolvido nas 4 mortes recentes.
Sua condenação foi exclusivamente por ter armas e formação de quadrilha com
finalidade subversiva. A pena (12 anos e 10 meses de prisão) foi exagerada porque as
leis da época puniam o máximo possível os delitos políticos. Um criminoso comum não
teria levado mais de 3 anos pelos mesmos delitos.

No apartamento em que Battisti morava foram encontradas algumas armas. A
polícia fez perícia de todas elas, e comprovou que nenhuma tinha sido usada(Aqui).

Um fato muito importante é que, quando Battisti foi detido e julgado em
seguida da blitz em junho de 79, em nenhum momento se cogitou que ele tivesse
alguma participação na morte de Torregiani. Observe com detalhe o seguinte: nessa
data, já tinham sido cometidos todos os assassinatos do PAC, e o assunto estava à flor
de pele, não só na sociedade milanesa, mas em toda Itália.

A blitz em que Battisti e outros foram presos foi realizada para indagar sobre os
4 assassinatos. Portanto, era de esperar que todos os detentos fossem
interrogados sobre isso. Mas Battisti nunca foi interrogado, o que mostra que a
polícia não suspeitava dele.

Houve durante esse julgamento, que se estendeu durante vários meses, 13
denúncias de casos de torturas.
Vale enfatizar que, mesmo sob tormentos, nenhum dos torturados mencionou a
Battisti como possível suspeito. Alguns dos torturados acusaram outros companheiros,
mas o nome de Battisti nunca foi mencionado. Aliás, tanto os outros guerrilheiros
como a polícia sabiam que Battisti era um membro recente no grupo, e que não
possuía nenhuma posição hierárquica importante dentro dele.9
Se ele realmente tivesse cometido aqueles crimes deveria haver pelo menos
duas ou três pessoas que o soubessem, já que nenhum deles foi praticado por uma
pessoa sozinha.
Durante o tempo que durou aquele processo, que foi coletivo, Battisti foi
enviado com os outros a uma prisão da província de Cuneo (Piemonte), custodiada
pelo exército. Apesar disso, tudo indica que a escolha não foi seletiva contra Battisti,
porque era usual internar nesse lugar membros de grupos armados.

Em maio de 1980, uma juíza se empenhou em tirar a Battisti dessa prisão,
porque sabia que ele não tinha cometido nenhuma morte. Ela tinha acesso a
toda sua informação e saberia se Battisti era acusado de assassinato.

Nesse mesmo mês, a magistrada conseguiu que Cesare fosse transferido à
prisão de Frosinone, uma velha fortaleza com segurança não muito boa. Na Itália,
ninguém colocaria um suspeito de assassinar dois agentes do estado e dois abastados
fascistas num cárcere de média ou baixa segurança.

Parece claro, então, que a idéia de acusar a Battisti daqueles 4 crimes surgiu
depois. Quando foi capturado em 1979, a justiça ainda não pensava que ele
seria um bom bode expiatório para aqueles quatro crimes.

OS EXÍLIOS DE BATTISTI

Dentro da prisão, Battisti teve oportunidade de confraternizar com muitos
detentos, tanto do PAC como de outros grupos, arrependidos ou desapontados.
Ninguém queria continuar a luta armada. Quando Cesare pediu ajuda para fugir, os
colegas lhe encomendaram que (depois de sair) tentasse convencer aos chefes de
grupos armados para acabar com as guerrilhas. Os amigos de Cesare recorreram a
Pietro Mutti, que estava livre e tinha fundado um novo grupo. No dia 4 de outubro,
Mutti, com alguns amigos e a jovem Maria Cecília Barbetta, ajudou a Battisti a sair da
prisão, sem executar nenhum ato de violência.
Mas Battisti falhou em sua missão pacificadora, porque o grupo de Mutti que o
resgatou queria continuar a luta e o acusou de “traidor”. Durante a semana seguinte,
Cesare ficou escondido em Roma e manteve contatos diários com Mutti e seus amigos.
Nesses contatos Battisti ficou convencido de que Mutti não estava ressentido com ele,
mas que se sentia esmagado pela sensação de fracasso e que gostaria de voltar à vida
normal. Logo depois Battisti saiu de Roma e atravessou os Alpes andando à pé até
chegar à França.

Battisti se afastou definitivamente da luta armada e reconheceu que esse
método de luta era injusto e devia ser descartado.

Battisti viveu durante um ano em Paris, em forma semiclandestina, e conheceu
Laurence, uma namorada com a qual chegou a México em 1982. Disposto a formar
uma família, teve sua primeira filha, Valentine, nascida dois anos após. A família foi
morar na cidade de Porto Escondido, no estado de Oaxaca.
A militância anterior foi substituída por uma militância intelectual, durante a
qual escreveu 17 romances policiais que pintavam a vida na época da Estratégia de
Tensão vivida na Itália. No ano 1986, fundou a Revista Cultural Via Livre, cujo site
ainda permanece ativo(www.vialibre5.com). Sua atividade cultural e intelectual foi muita intensa, o que
talvez explique uma dupla reação: a simpatia que despertou entre artistas, intelectuais
e líderes esclarecidos (milhares dos quais assinaram petições em seu favor na França) e
a desconfiança do sistema repressivo. Participou de vários festivais do livro e organizou
a primeira Bienal de Artes Gráficas do México.
Em 1985, o presidente francês FRANÇOIS MITTERRAND lançou a chamada Doutrina
Mitterrand, para oferecer proteção aos militantes da esquerda armada italiana, que
tivessem renunciado à violência. O compromisso foi apenas numa promessa verbal
feita pelo presidente no dia 21/04/1985, no 65º Congresso da Liga dos Direitos do
Homem, e visava amenizar o clima de perseguição e ódio que agitava Itália. Esse1
compromisso foi respeitado pelo governo enquanto Mitterrand esteve no poder, mas
foi ignorado pelo governo de direita de Chirac, e atualmente também por Sarkozy.
A oferta de uma proteção informal em vez de uma forma legal de asilo parece
parte de um “arranjo” internacional entre Mitterrand e o líder socialista Bettino Craxi.
O governo francês queria mostrar uma face humanitária sem interpor‐se totalmente
no caminho do revanchismo italiano. O Conselho de Estado da França (um órgão
consultivo e judicial, que atua como supremo tribunal no caso de justiça
administrativa) derrogou em 2005 a Doutrina Mitterrand, declarando a falta de valor
jurídico da “promessa”. O presidente conservador Chirac não tinha incomodado aos
refugiados italianos, mas, a partir dessa data, começou a curvar‐se às pressões do
Quirinal(Quirinal:palácio do governo italiano).
Esta mudança de rumo é atualmente muito criticada por uma parte da
sociedade francesa, que se espanta pela falta de senso de honra de seus governantes.
Em 1990 Battisti voltou à França por encontrar‐se exatamente nas condições da
Doutrina Mitterrand. Ele tinha quebrado seus laços com os PAC (seu último lugar de
militância) em 1978, e ninguém acreditava que fosse autor de 4 homicídios.
Ao voltar na França, Battisti começou a participar em causas humanitárias e
culturais, que o tornaram muito popular. Colaborou com jornais alternativos,
associações de refugiados, realizou tarefas educativas, e participou de eventos
políticos.
A esquerda independente francesa teve também momentos brilhantes, o
último dos quais foi o maio de 1968. Os herdeiros desses anos dourados se
encantaram com o trabalho de Cesare e se tornaram críticos radicais da política
italiana e, depois, dos inimigos de Battisti no Brasil. Com efeito, milhares de
intelectuais, artistas, celebridades e políticos que apoiam Battisti têm insistido por
todos os meios sobre a infâmia dos governos italianos e o espírito vingativo dessa
nação saudosa do fascismo.2

Além de irritar aos italianos, esses franceses solidários se têm tornado também
o pesadelo do Supremo Tribunal Brasileiro, cujos erros revelam de maneira
contínua, quase sem descanso.

Em maio de 1991, o governo italiano pediu a França a extradição de Battisti,
mas foi rejeitado pela justiça em duas instâncias. Entre os aspectos considerados para
essa decisão, a corte mencionou que a legislação antiterrorista italiana era contrária
aos princípios franceses de direito. Também, foi dito que a Corte Européia de Direitos
Humanos considera inválido o julgamento em ausência.
Em 2003, Battisti obteve uma decisão favorável para se naturalizar francês, mas
no ano seguinte, o governo, já cúmplice da Itália, revogou a decisão. Em conseqüência,
em fevereiro de 2004 foi detido pelo governo francês por ingerência da justiça italiana,
apesar do repúdio que isso produziu em milhares de franceses. Colocado em liberdade
vigiada no mês seguinte, o pedido de sua extradição foi confirmado pelo Corte de
Apelações de Paris. Segundo as estimativas mais modestas, 20 mil intelectuais,
políticos e outras celebridades marcharam por Paris pedindo a liberdade de Cesare.
A extradição de Battisti foi confirmada pelo Conselho de Estado quando ele já
se encontrava no Brasil, em 2005. Meses depois, a Corte Européia de Direitos Humanos
não aceitou o recurso dos advogados franceses de Battisti. A Corte não que queria se
comprometer num problema que incluía França e Itália, e não mostrava a menor
sensibilidade pelos “Direitos Humanos” que apareciam, ironicamente, em seu nome.
Segundo algumas fontes(http://liberdadepalestina.blogspot.com/2009/03/battisti‐de‐dissidente‐bode‐expiatorio.html),os governos de ambos os países teriam feito um
acordo para acabar com a Doutrina Mitterrand, fazendo então viável a extradição de
italianos em troca de um acordo econômico. Além da infame troca de vidas humanas
por melhoras econômicas, este acordo parece descabido: por que Itália teria tanto
interesse num grupo de refugiados que se esforçava por voltar à normalidade que lhes
tinha sido tirada durante ET? Será que a vingança tem valor econômico?
No começo da Doutrina Mitterrand, o processo de proteção na França era
conjunto para todos os italianos. Durante esse período, Cesare nunca falou sobre sua
sua inocência. Em 1991, foi aberto um processo pessoal e aí então ele pôde se declarar
inocente. Desde essa data, sempre negou com toda força aquelas acusações.

Nem como voluntário de Anistia Internacional, nem como colaborador do
ACNUR, nem em nenhuma outra condição, nunca conheci alguém que fosse
culpado e pudesse fingir inocência durante 18 anos sem cometer contradição.


B. O Processo Condenatório

DETALHES DAS FONTES

Dos documentos originais da justiça de Milão contra os PAC, as autoridades
publicaram apenas três sentenças e um histórico na Internet:
A sentença 76/88 de 13/12/1988 com registro geral 49/84, de La Corte d’Assise
di Milano, que contém os relatórios preliminares e as sentenças de 23 pessoas (entre
as quais Cesare Battisti) por diversos delitos dos PAC.
Esse é o julgamento em 1ª instância de todos os 23, que são sentenciados a
diversas penas, sendo que Battisti foi condenado a prisão perpétua com privação de
luz solar. O documento consta, no total, de 748 fólios e pode ser acessado no site:acessado no site:
www.vittimeterrorismo.it/archivio/atti/sentenzaPAC1988.pdf
Doravante, para me referir a este, escreverei S88 (Sentença [do PAC] de 1988).
Os outros documentos são usados em meu livro, mas são desnecessários neste
resumo. Entretanto, se o leitor deseja esgotar o assunto, indico as páginas abaixo:
 

Página 1
Página 2
Página 3

As autoridades italianas não tornam públicos outros documentos: inquéritos
policiais detalhados, depoimentos escritos, resultados de perícias, os nomes, fotos e4
qualificações completas das pessoas envolvidas, vídeos (já possíveis na época), nem,
em fim, qualquer coisa que possa ter valor objetivo. Estes quatro documentos são
apenas relatos, com “confissões” de delatores e de supostas testemunhas. Tem o
mesmo valor probatório que um romance.

Sendo que diversos comunicadores, advogados, “comentaristas” e outros
“especialistas” têm tecido uma série de fábulas sobre o processo de Battisti (por
exemplo, que havia mais de 10 testemunhas oculares, além do delator), sugiro a
leitura desses documentos, especialmente de S88.

CASO SANTORO

Depois do primeiro julgamento, começado após de junho 1979, quando Battisti
e outros foram detidos, houve uma segunda repressão contra os PAC ainda foragidos,
e a maior parte foi capturada. O segundo processo coletivo contra os PAC,
seguindo‐se à detenção dos últimos membros do grupo, incluindo Pietro Mutti, teve
início em 1982, quando Battisti estava no México. Em sua autobiografia, Cesare não
pode precisar os detalhes da captura do resto do PAC e apenas fica sabendo que eles
foram torturados, eventualmente com tortura química (drogas que produzem
alucinações).
Segundo a primeira versão da S88, na página 224, o carcereiro Santoro foi
morto por dois tiros de pistola nas ruas de Udine, no dia 06/06/1978, disparados por
um jovem que fingia namorar uma garota ruiva. O relato de p. 226, afirma que as
declarações de PIETRO MUTTI a partir do 05/02/1982 modificam a investigação.
[Doravante, os números entre parênteses indicam fólios da S88]
Na época, uma fonte confidencial (225), sobre a qual não se sabe nada, teria,
segundo o juiz, colaborado na reconstrução da atividade do PAC, feita pela polícia.
Naquela reconstrução, montada com novos detentos arrestados no dia 04/10/1979,
ficaria provado que os matadores de Santoro eram Pietro Mutti e Enrica Migliorati.
Poucos dias depois, os Carabinieri de Udine chegaram à mesma conclusão.
Então, a polícia já tem seu possível culpável e agora a tarefa é encontrá‐lo para
fechar o processo. Uma pessoa supostamente chamada “Rosanna Trentin” é a45
primeira que diz ter reconhecido Mutti como motorista no dia do crime. Quando a
polícia lhe pede que identifique fotos, porém, diz que não se lembra bem dos detalhes,
e a polícia a isenta desta missão. Portanto, a acusação de Mutti pelo MP como
motorista do grupo fica anulada.
Os juízes dão à delação de Mutti contra Battisti o maior valor possível. Para
tanto, lhe atribuem várias virtudes, como a sinceridade. Mutti teria sido sincero e
generoso ao denunciar Battisti e se incluir na morte de Santoro, porque ele já não
estava sob suspeita, pois a testemunha Rosanna não o havia identificado pelas fotos.
O juiz interpretou essa autoacusação como mostra de seu grande arrependimento.
Segundo o processo, Mutti foi encontrado e preso, talvez entre 12/1981 e
01/1982. No final de 01/1982 já estava prestando declaração no Ministério Público
(MP). No dia 28 de janeiro, Mutti fez a delação principal (227):

Quando estive na estrutura dos PAC participei indiretamente do homicídio do [...] Santoro. Fiz
o reconhecimento das ruas cerca de uma semana antes do homicídio: por sua vez,
participaram na ação o Battisti, Enrica Miglioratti, e outras duas pessoas que não me arrisco a
identificar ou lembrar. Quem disparou foi o Battisti. [Grifo meu]

No interrogatório de 08/02/1982, em Milão, Mutti descreve “minuciosamente”
a figura de Santoro, e confessa ter dirigido o carro que transportou os matadores.
Ainda fornece outros detalhes:
Diz que a pistola era uma Glisenti 10,20, empunhada por Battisti, que a teria
procurado na casa de um colega também membro dos PAC; e que Battisti propôs
aquele crime durante as reuniões na casa dele (Mutti) e de outro membro dos PAC.
Para completar, o delator explica todos os detalhes do estudo do cenário do crime, do
deslocamento (229), e da própria execução (230). Mutti descreve o homicídio com três
tiros (230, §11), enquanto na versão anterior (224, alíneas 12‐13) fala‐se de dois tiros.
Finalmente, relata que Battisti e Enrica Migliorati aturam fantasiados, ele com
bigodes e barba castanhos e ela com uma peruca ruiva. Ou seja, no caso Santoro, as
denúncias de Mutti são as seguintes: (1) Ele como motorista; (2) Lavazza como carona;
(3) Battisti como matador; (4) Migliorati contracenando como par romântico.46
Segundo S88, p. 231, todos os relatos foram rigorosamente reiterados em
todos os interrogatórios posteriores, coincidindo em todas as versões. Apenas houve
lieve variazione em três pontos: detalhes das reuniões preparatórias, da partida de
Milão de Mutti, Lavazza e a garota, e da troca de disfarces depois do crime.

A diferença de detalhes triviais não altera o valor da declaração, mas o relator
reconhece essas variações para fazer a narração mais confiável. Teria sido
suspeito que Mutti repetisse tudo várias vezes sem errar em nenhum detalhe.

De acordo com o relatado pelo próprio Mutti, tanto ele como outros membros
se sentiam constrangidos pela possibilidade de ter de cometer um homicídio quando
foi proposto, por Battisti, o assassinato de Santoro. Eles tinham cometido numerosos
roubos, pequenas sabotagens sem vítimas, e ferido três pessoas, mas nunca tinham
matado ninguém. Uma morte seria um salto qualitativo (expressão muito usada na
S88).
Numa estratégia inteligente para incriminar Battisti (possivelmente já delineada
pelo MP e os juízes) Mutti confessa (231, §2) o constrangimento do grupo, que temia
entrar numa aventura homicida nunca experimentada.
É incrível o carinho que o juiz dispensa a Mutti, apesar de ser um “terrorista”. O
magistrado o protege da observação de um dos defensores que lhe recrimina ter
mudado um detalhe em dois relatos do mesmo fato. O juiz justifica o erro, explica que
carece de importância, e exorta ao advogado a apreciar o esforço que o delator faz
para lembrar os detalhes.
No interrogatório de 15/06/1982, Mutti se lembra de ter comentado o
assassinato de Santoro (depois de sua ocorrência) com Cavallina, mas não se lembra
em que termos (233). Se o leitor analisa as fontes (especialmente S88) poderá
perceber que esta tarefa de complicar novas pessoas no relato não é gratuita.
47
Mutti e seus “consultores” sempre descrevem os fatos, mostrando que os
crimes foram feitos cuidando muito os detalhes. Por que? Dessa maneira, a
polícia podia dizer: “Eles não deixaram rastros”. A verdade deve ser que os
rastros foram destruídos. Lembre que na época Battisti não estava na Itália e era
difícil conseguir objetivos dele para colocá-los como falsas pistas.


O relator termina esta parte elogiando a espontaneidade e constância de
“arrependido”, bem como sua forma particularizada de narrar os fatos. Destaca a
nobreza de Mutti a oferecer esta informação, sendo que nenhuma prova o condenava.
Então, ele se tinha tornado delator por pura generosidade e por amor à justiça.
O relator enfatiza que as narrações de Mutti coincidem com os dados objetivos
sobre o carro, e também com as declarações de outros “arrependidos”. Destas
narrações, só uma é reproduzida na S88. Também diz que tudo coincide com a perícia
balística.

Sobre a perícia não se fornece qualquer detalhe, nem se informa onde foram
arquivados os objetos originais ou fotografias, nem o nome do perito, nem
qualquer outro indício  real(237).Menciona-se uma declaração de uma testemunha dita "Ronco"(?) que tinha visto um casal namorando perto do local do crime,porém,em atitude suspeita(238).


Afirma‐se que os retratos falados (guardados em cartório) dos outros 4
acusados, obtidos das “numerosas e concordantes descrições das testemunhas
oculares (?)” coincidem notavelmente com os originais.

Não se fala do motivo de Battisti para matar Santoro. Entretanto, nos escritos
de Cavallina percebesse que era ele quem odiava o carcereiro por ter sofrido
maus tratos dele. Contudo, Cavallina não é tratado como suspeito, embora seja
mencionado como informante.

MASSIMO TIRELLI, de cuja biografia se sabe pouco, declarou durante os
interrogatórios judiciais, que um dia foi convidado a uma reunião em casa de Cavallina,
com outros membros dos PAC. Quando lá estavam, Tirelli, que permanecia48
marginalizado das conversas, percebeu que Mutti, Cavallina e Battisti falavam de
Udine, “e lembra que o tom da conversa era muito sério (sic)”. Uns dias depois,
quando leu as notícias sobre a morte de Santoro reivindicada pelos PAC, “teve a forte
dúvida de que as pessoas que tinha encontrado naquela ocasião pudessem ser os
responsáveis do homicídio”.
Em 243, §2, o relatório afirma algo que deveria ser relevante para o tribunal:
As declarações de Mutti relativas à participação de Battisti no homicídio do Maresciallo
Santoro, são confirmadas pelos resultados do “procedimento penal” aberto em Udine, e nas
declarações de outros numerosos imputados [O Grifo é meu].
O tom entusiasta do anúncio faria supor que a justiça já possuía provas sólidas.
Na verdade, essas provas são cinco nomes atribuídos pelos juízes a testemunhas
“oculares” do crime de Santoro. São (1) Menegon, (2) Pagano (3) Suriano, (4) Zampieri
e (5) Linassi.
Quantos homens e quantas mulheres? Quais idades? Onde moram? Quais são
suas profissões? Foram testemunhas em que lugares? O que viram? O que faziam lá?
Que dados registraram? Como podemos encontrá‐los, se estiverem vivos? Ninguém
diz.
Mas, sabe‐se que esses cinco viram um casal no dia e local do crime, e que o
rapaz parecia mais alto que a menina. Um deles disse que menina era baixa, e outros 4
que era alta. Alguns dizem que era ruiva. Outros dizem que não lembram a cor do
cabelo.

O juiz chama essas descrições de eloqüentes (244). Parece comovido pela
coincidência entre o relato de Mutti, as descrições oculares, e os dados
antropométricos da polícia. Mas, ainda tem uma prova mais contundente da
cumplicidade de ambos: Um tal de Berzacola diz que viu uma vez, em uma festa,
Battisti e Enrica se beijando. Claro que o casal assassino, então, era esse!

Um testemunho repetido em todos os documentos, oficiais ou não, é da
misteriosa MARIA CECÍLIA BARBETTA. Num depoimento ao Juiz Instrutor de Verona, no dia
12/05/1982, ela afirmaria:
49
Posso dizer apenas que, na primavera de 1979, falando com Cesare Battisti, ele me
disse o efeito que produzia matar uma pessoa, referindo‐se ao homicídio de Santoro,
do qual se considerava um dos autores.
Mas, ninguém sabe se ela falava a verdade, nem se Battisti falava sério ou com
ironia. Pessoas envolvidas em violência têm certa tendência a contar feitos exagerados
para aumentar sua imagem.
A partir da pág. 251, o tribunal considera ter dado todas as provas
“irrefutáveis” da culpabilidade de Battisti, e se concentra no caso, mais complexo, de
Enrica Migliorati, cuja responsabilidade naquela execução parece ter sido real.
CASOS SABBADIN E TORREGIANI
Os fatos relacionados com as mortes de Sabbadin e Torregiani foram
investigados por intelectuais franceses amigos de Battisti, que se mobilizaram até a
Itália e tentaram reconstruir os fatos. Mesmo assim, a obstrução imposta pelas
autoridades italianas permitiu apurar poucas coisas. Mas, algumas se sabem com
certeza:
Inicialmente, Mutti, deslumbrado por seus privilégios junto ao MP, tentou
acusar Battisti de executor de ambos os assassinatos, mas alguém o alertou de que os
fatos foram quase simultâneos. Então, convencionou‐se que Cesare seria acusado de
planejar, promover e preparar todos os detalhes para ambos os crimes. Não seria
suficiente atribuí‐lhe “cumplicidade”, porque se pretendia que ele fosse tão culpado
como o que apertou o gatilho.

O MP pretendeu vender a história de que Battisti tinha fuzilado Sabbadin, mas
essa armação ficou confusa, porque, numa das declarações, o indicaram como
executor e, em outra, como parceiro do executor, que foi Diego Giacomini.

O relator da S88 não se furta de manifestar sua admiração pelo informante,
agora de maneira eufórica.50
As declarações de Mutti, em particular, são iluminadoras, não apenas pela reconstrução dos
episódios criminosos, mas também e, sobretudo, porque reformulam a fase do processo que
conduziu à realização desses gravíssimos fatos e o enquadram na história da organização. (438,
§1)
Aliás, segundo os magistrados, a morte de Santoro reforçava a imagem
monstruosa de alguém que matou um carcereiro indefeso. Ora, por que era necessário
carregar mais um crime em Battisti? Não poderia distribuir‐se a responsabilidade de
maneira equânime? Em 1983, quando já tinham muitos “arrependidos”, as
autoridades não podiam carregar crimes graves sobre seus delatores, pois, se pegavam
penas muito altas, eles não seriam mais úteis à polícia nem ao MP.
Segundo Mutti (442) a idéia de matar Sabbadin e Torregiani foi amadurecida
em várias reuniões na sua própria casa onde estava Cavallina e alguns outros, o
próprio Battisti e, algumas vezes, SANTE FATONE.
Nesta altura, o processo é rico em detalhes que o leitor pode ler entre as
páginas 445 e 451 de S88, mas há apenas alguns pontos que são essenciais para o
caso Battisti. O mais importante, é a permanente insistência de Mutti no sentido de
que Battisti não dava muitas informações sobre o duplo crime que se estava
preparando, mas apenas dizia que ele ia acontecer. Também, Mutti e Fatone
enfatizam que Cesare não queria ouvir nenhuma oposição ao futuro atentado.
Segundo eles, Cavallina e outros queriam convencê‐lo de que o ataque seria
impopular, que não produziria nenhum ganho político e que era perigoso, mas Battisti
teria insistido assim mesmo. Essa insistência em mostrar Battisti como um fanático do
atentado tornaria a ele tão culpado como os que usaram as armas.
Já no caso de Sabbadin podia se fazer mais simples. Se Battisti não era acusado
de estar no cenário de morte de Torregiani, então já não haveria contradição ao dizer
que ele tinha disparado contra o açougueiro. Foi isso exatamente o que os delatores
disseram. Os informantes acusam a Battisti de ser “companheiro” de Giacomini, a
quem atribuem ter feito os disparos.
Novamente, o relator se deleita com descrições de “testemunhas oculares” que
nem menciona o nome. Todas elas teriam visto um cara de estatura media ou baixa,1
de cabelos loiros, que acompanhava o executor. Seu retrato falado teria mostrado
“parecido significativo” com o cara que matou a Santoro, e também com as fotos
originais de Battisti. Entretanto, não se disse se alguém reconheceu as fotos
diretamente. Aliás, o relator reconhece depois que Battisti não tem cabelos loiros, mas
castanhos. Contudo, diz “loiro e castanho são parecidos”.
A esposa de Sabbadin não quis efetuar reconhecimento por causa do trauma e
do próprio medo (449). A verdade é que todas as vítimas de crimes selvagens têm
traumas e medos, que são agudos logo após o crime. Mesmo assim, muitas pessoas
aceitam fazer esse reconhecimento.

No caso destes crimes dos PAC, não se menciona ninguém que aceitasse
reconhecer as fotos ou os suspeitos.

As últimas páginas surpreendem pela escassa aparição de Battisti, e pelas faltas
de detalhes sobre seu papel nos assassinatos. Na primeira leitura de S88, isto me
chamou a atenção, mas depois reparei que, antes deste relatório houve outros
relatórios feitos pela Corte D’Assise de Milano, que continham informação detalhada
e, talvez, poderiam entrar em contradição com novas descrições. Fora das declarações
de Mutti (especialmente) e de Fatone (em menor proporção), as delações parciais de
outros “arrependidos” eram muito curtas. Em geral, contam alguma trivialidade, ou
dizem “sim” quando lhes perguntam se Mutti e Fatone falaram a verdade.
Ao que parece, a idéia do MP e sua equipe era que quanto mais simplificado
fosse o relato, haveria menos possibilidade de contradição.
Na página 460, se insiste em que as chiamate in correità (delações) não podem
ser ignoradas quando encontram confirmação objetiva em perícia balística, relatos de
testemunhas, modalidade do episódio e aspectos lógico‐dedutivos. Mencionam‐se
algumas vezes as perícias balísticas, mas elas não foram acrescentadas aos autos. Aliás,
as menções são vagas.
Diz‐se que tal pessoa tinha uma arma tal e tal, e se acrescenta: “isto foi
comprovado pela balística”. Não se sabe o que a balística comparou. Não há relatório
de perícia balística. Em vários casos, se afirma que uma arma de Battisti, por exemplo,52
era a arma do crime, porque ambas tinham a mesma marca e calibre. O relator parece  pensar que só existe uma arma de cada tipo.

Não há nenhuma comparação do relevo dos projéteis encontrados nos corpos
com os disparados pelos peritos contra alvos brandos, que permitiriam
identificar o canhão da arma. Em verdade, nem se diz se isto foi feito.

As testemunhas são também fantasmas. Mencionadas apelas pelo nome, teria
sido impossível encontrá‐las, mesmo se tivesse existido um novo julgamento, como se
faria em qualquer país minimamente civilizado.

Já nessa época existiam na Itália vários documentos de identificação: eleitor,
identidade, contribuinte de impostos, condutor de veículos, serviço militar.
Através do registro de qualquer um deles as testemunhas poderiam ser
imediatamente identificadas. Na S88 não há registro de documentos de
nenhuma das testemunhas. Obviamente, o tribunal não tem nenhum interesse
em que essas testemunhas sejam identificadas.

Ao falar de modalidade do crime, se pretende que cada criminoso tem sua
marca registrada. Em algum momento, um dos delatores fala de que os assassinatos
eram do estilo de Battisti!

As referências a deduções lógicas são grotescas. A maior parte das “deduções”
usadas no relato são inferências indutivas precárias, sem base empírica. Por exemplo,
Battisti usava saltos relativamente altos em seus sapatos. Então, como um dos
criminosos parecia ter saltos altos, devia ser ele.

CASO CAMPAGNA

Novamente, a pessoa que inicia a delação é Mutti. Embora esta insistência em
usar Mutti possa criar suspeitas sobre a seriedade das acusações, também serve de
precaução. Se a esta altura dos acontecimentos fosse introduzido um novo delator,53
poderiam aparecer contradições mais chocantes que as redundâncias. Aliás, os indícios
mostram que Mutti tinha grande imaginação e armava histórias muito convincentes,
embora às vezes fosse descoberto.
Ele disse que encontrou Battisti e que este se atribuiu o crime de Campagna
(512).
A polícia diz que umas pessoas (quais?) denunciam um jovem loiro, vestido com
uma jaqueta de couro. Battisti também tinha uma jaqueta de couro. O relator
reconhece de novo que Battisti não é bem loiro, mas, pelo menos (acrescenta), seus
cabelos são castanhos claros! (522)
O tribunal se enfronha na apreciação de coincidências meio cabalísticas, por
exemplo, quantos meses passaram entre um crime e outro, ou em que dia de semana
foram executados, por que a maior parte dos crimes foi com cinco tiros (553), e daí
aponta uma conicidência mais importante :nos últimos crimes usou-se a mesma arma...mas,na última linha,o relator retifica,"ou,pelo menos,o mesmo calibre".

O relator usa os mais rançosos preconceitos da velha criminologia italiana. Para
ele, a personalidade de Battisti é compatível com este tipo de crime. (524)

O protagonismo de Mutti não tira sua parte de mérito a Fatone. Este conta:
“Memeo me diz que um dia vamos especialmente matar o Campagna” (525). Mutti
arredonda sua colaboração declarando assertivamente: “Battisti e Memeo foram os
atores materiais. Battisti disparando e Memeo guiando o carro” (527, 1ª linha).
O relator parece tão identificado com a narração dos informantes, que em
alguns momentos esquece de citar ou escrever em estilo indireto e descreve a situação
como se ele tivesse sido testemunha dos fatos (528).
54
C. Os Fatos Irregulares

TORTURAS PRÉVIAS

Antes de atingir o privilégio de “arrependidos” e ter direito a desconto nas
penas, os informantes foram “abrandados” por meio de torturas.
No relatório de 1979, Anistia Internacional denuncia a contínua detenção, sem
julgamento, de grupos de pessoas relacionadas com a Autonomia Operária. O texto
não cita expressamente os PAC, mas quase todos seus membros eram oriundos da
Autonomia Operária e poderiam estar incluídos nessas detenções.


Sem nomear os atores explicitamente, AI denuncia as torturas que foram
aplicadas a 9 pessoas detidas em relação com o homicídio de um joalheiro
em Milão.

Pela data da denúncia (04/1979), só pode referir‐se ao nosso antigo conhecido,
o joalheiro Torregiani. Ao mesmo tempo, os investigadores de AI receberam na época
denúncias de maus tratos nas prisões e especialmente nas delegacias, consistentes em
pancadas, posições dolorosas, afogamento, chicotadas, chutes e queimaduras leves.
Valério Evangelisti, escritor e militante de Direitos Humanos, ao responder para
uma revista as perguntas sobre Césare Battisti, foi interrogado sobre as torturas:
Os magistrados torturaram os presos?
Não. Foi a polícia que os torturou. Foram ao todo treze denúncias: oito
provenientes de acusados e cinco de seus parentes. Não que seja um fato inédito, mas
é, até certo ponto, insólito, em se tratando de uma investigação daquele tipo. Os
magistrados se limitaram a receber as denúncias para depois arquivá‐las(Aqui).

Um dos membros menos ativos dos PAC, SISINIO BITTI é quem descreve com
maior detalhe o processo de humilhações e torturas às quais foi submetido. Ele tinha
sido detido, com muitos outros, pelo assassinato de Torregiani e foi obrigado a
confessar sob tortura.55
Em 25/01/80, Sisinio Bitti pede para ser novamente escutado pelos magistrados
de Milão na presença do promotor ARMANDO SPATARO, e declara:

Retiro tudo o que eu disse durante os interrogatórios do caso Torregiani, pois fui induzido
a fazer essas declarações por causa das torturas que sofri de parte da policia. Começaram
a bater‐me e perguntar‐me o que eu sabia sobre Torregiani e eu disse que não sabia nada,
absolutamente nada a este respeito. Havia uma pessoa que me espancava nas costas e
outra que, sentada numa cadeira, apertava as têmporas com os punhos e me pressionava
sob as orelhas.
Outro me espancava na entreperna, no estômago e nos testículos. Algo depois fui
colocado perto de uma torneira […] onde me obrigaram a deitar‐me num banco de
madeira. Aí, fui forçado a beber a água que chegava por um tubo conectado à torneira,
aberto ao máximo. Ao mesmo tempo outra pessoa me espancava o estômago com os
joelhos, me obrigando a vomitar a água engolida.
Tudo isto se repetiu três ou quatro vezes, sempre acompanhado das mesmas perguntas e
respostas. Depois de tudo isso, eu desmaiava e ouvia a Marco Masala gritar. Alguém veio
perguntar‐me se Marco sofria de ataques de epilepsia e falou que o levariam a um
hospital. [...]
Fui levado a um local pequeno, onde, lembro, tinha muitas tábuas […]. Fui despido e
depois de ter sido amarrado com cordas fui estendido sobre a mesa de costas, com os
braços e as pernas atados, e começou uma série de torturas ao final das quais já não podia
resistir. Então, admiti na frente dos policiais tudo o que eles pretendiam que dissesse.
Depois, eu confirmei aquilo, sempre pelo medo do que poderia acontecer. [...] Também
me puseram sobre o estômago e o tórax uma coberta, e uma pessoa de cerca de 40 anos,
com óculos pretos, que parecia importante, me espancava com uma bengala no tórax, me
dizendo:
Fala bastardo!
Realmente, não sei nada do homicídio de Torregiani.
Enquanto a pessoa me seguia espancando, me perguntava:
Não conhece Ângelo?
Então falei e descrevi o único Ângelo que conhecia(GRIMALDI, LAURA: Processo all’istruttoria. Cronaca di un’inquisizione politica (Milano, Milano
Libri, 1981) p. 35‐37)
56

JULGAMENTO EM AUSÊNCIA

Se o réu não se encontra no local em que está sendo julgado, nem está
vinculado a ele por um sistema de vídeo‐conferência, não será possível formular‐lhe
nenhuma pergunta. É óbvio, então que julgamentos a revelia podem oferecer alguma
garantia ao réu, exclusivamente quando todas estas condições se satisfazem:

1. Possui absoluta confiança em seus advogados.
2. As provas sobre o caso foram conferidas, e são consideradas suficientes
como para não ser necessária nenhuma informação emergente.
3. Sua condição de culpado/inocente é de domínio público e não precisa ser
aferida do processo de julgamento.
4. Tem garantido um novo julgamento, se este lhe for desfavorável, além dos
recursos e apelos que a lei permita.

Mas este raciocínio traz conseqüências perigosas. Se não admitimos a
necessidade de que o réu assista a sua defesa, podemos imaginar que o direito de
defesa fica submetido ao acaso, ou quase isso.
Isto é extremamente importante para uma visão humanitária da punição.
Inclusive grandes genocidas, como oficiais das SS, os líderes da ditadura grega de 1967,
e os criminosos militares da ditadura argentina de 1976, foram julgados quase sempre
em presença. Em alguns casos, o juiz emite ordem de captura, mas sem pronunciar
ainda sentença.
É frequente ouvir a afirmação de que o réu a revelia está abandonando sua
defesa e, portanto, se ele for condenado, estará recebendo um castigo produzido por
sua própria desobediência. Isto significa que um sujeito suspeito de um crime que não
cometeu, punível com 30 anos de prisão, poderá receber essa condenação se o
tribunal decidir que sua ausência tende a confirmar sua culpabilidade. Uma pena
desproporcional para um ato de contumácia!57
Na França e em todo país civilizado (ou, até, semicivilizado), o réu teria direito a
um novo julgamento, mas, no caso de Battisti, teria direito à anulação, pois essa
paródia de julgamento foi um ato forjado e falso de qualquer ponto de vista.
Voltando mais pontualmente ao assunto do Julgamento em Ausência, seria
bom lembrar que esse tipo de processo está em ampla discussão na União Européia,
possui grandes, muitos e eminentes inimigos, e é aceito em algumas circunstâncias sob
grandes ressalvas.
O Sistema de Justiça Penal do Reino Unido publicou recentemente
(04/06/2008)o documento intitulado: Enhancing procedural right and judicial cooperation
in EU: Proposed Framework Decision on new rules for cross‐border case
where judgments are made in absentia(http://www.justice.gov.uk/consultations/docs/cpr0408%E2%80%90response.pdf)

Neste documento se formula uma consulta a 11 entidades européias, que não
incluem organizações humanitárias, o que sugere que se está tomando como amostra
o setor mais conservador do espectro dos Direitos Humanos. Entre as consultadas há
associações de magistrados e até da polícia. Apesar disso, vejam como a resposta é
cautelosa (pág. 8):

Todos os que responderam coincidiram em que deve existir o direito de novo
julgamento, quando um estado membro [da União Européia] procura a
rendição de uma pessoa, e não apenas o direito a solicitar o novo julgamento.
[...] O governo concorda plenamente com esta posição e, em particular,
adverte que os novos julgamentos devem permitir a presença da pessoa
afetada, um novo exame dos méritos do caso, incluindo evidência recente,
sendo que o efeito da original revisão deva, possivelmente, ser revertido. Estes
pontos de vista são compartilhados por outros Estados Membros, e esperamos
que o texto seja emendado desta maneira. [Grifos meus]

No caso de Battisti, o julgamento foi feito em ausência por crimes sobre cuja
autoria não existiam provas, nem testemunhas isentas, nem defensores
idôneos, num contexto onde não era permitido um novo julgamento.
8
Neste caso, funciona o argumento oposto: Battisti fugiu porque sabia que não
teria um julgamento limpo.

DISSOCIADOS E DELATORES

Um dissociado, na gíria introduzida pela justiça italiana, é um ex‐ativista que
renega de seu grupo de origem, para dissociar‐se das futuras ações deste. Se o
afastamento ou dissociação for premiado com desconto de pena como
reconhecimento à decisão do réu, então é uma medida humanitária. Ora, se o
desconto exige informações sobre outras pessoas, o dissociado é apenas um simples
delator.
Em síntese, o dissociado não precisa ser delator, mas o fato de dissociar‐se (de
acordo com a justiça italiana) não vai ter nenhuma utilidade prática se ele não se
tornar delator. Então, a distinção é ociosa. Na Itália, os delatores são chamados
colaboradores da justiça” ou pentiti (arrependidos). Como diz Battisti em Minha Fuga
sem Fim, o arrependido judicial não é aquele que foi perdoado pelo padre, mas aquele
que colabora prejudicando os outros.
Este método tem sido fortemente criticado pelo ministro do STF brasileiro
Marco Aurélio de Mello, logo após a primeira sessão do julgamento de Battisti . Veja a
notícia da Folha On Line de 11/09/2009:

Outra linha do voto de Marco Aurélio será mostrar que, segundo o
ordenamento jurídico brasileiro, a delação premiada de outro envolvido não
serve para condenar alguém. "É muito fácil livrar a própria pele desse jeito. E,
neste caso, foi justamente o chefe do grupo que o delatou."http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u622420.shtml

A delação premiada foi inventada para poder “fechar” casos, colocando a culpa
em alguém, tirando da população o sentimento de insegurança e a mágoa de que o
crime fique impune. Nos Estados Unidos e na Itália esta instituição é muito popular,
porque os promotores ganham grande prestígio em sua comunidade ao descobrir o
suposto autor de um crime. Até filmes baratos da TV mostram que a proporção de
erros neste tipo de investigação é astronômica.

http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2009/09/11/o‐caso‐cesare‐battisti/?allcomments
Em muitos países existem figuras jurídicas para caracterizar àqueles membros
de gangues que decidem fazer um acordo com a promotoria para obter uma redução
em suas penas em troca de informação útil, desmantelar um bando, recuperar bens
roubados, ou para fins semelhantes. Numa minoria de casos muito especiais, esta
“colaboração” com a justiça pode ser eficiente, por exemplo, quando seja possível a
verificação imediata e direta. Se um promotor faz um acordo com um traficante, e ele
promete mostrar onde foi guardado um carregamento de heroína, o promotor poderá
pagar a promessa depois que a droga for encontrada. Mas, é claro que a tentação de
livrar‐se de parte da cadeia será muito forte, mesmo que produza prejuízos a um
inocente.
No caso particular de Mutti, houve inclusive uma reação dura de um dos
advogados defensores. Apesar de que a defesa de Battisti foi substituída pelo tribunal
por advogados “fajutos” cujo objetivo era deixar que as acusações do MP passassem
em objeção, entretanto, alguns dos outros detidos tinham defensores reais. Mutti, em
sua paranóia delatora começou a complicar outros detentos, e não apenas Battisti. Um
dos advogados (possivelmente de uma garota chamada Marisa Spina, à qual Mutti
queria complicar num crime para inocentar uma amiga dele) se manifestou com
energia:

Este processo tornou‐se assim um puro lugar de contos da parte do “arrependido”,
que está interessado nos benefícios dos prêmios dados pela lei. Esta circunstância
sozinha priva de todo respeito intrínseco a narração do delator. Pois, em concreto,
deve ter‐se presente que o principal “colaborador da justiça”, Pietro Mutti, tem
acusado falsamente pessoas inocentes, para depois se retratar quando aparecem
provas que o desmentem. (S93, p. 19) [Os Grifos são meus]

Depois de ler isto, fiquei surpreso de que o presidente do tribunal permitisse
transcrever um texto que parecia mostrar a fraude. Entretanto, a justiça não queria
prejudicar os outros réus, mas apenas Battisti. Era impossível impedir o registro dos
excessos de Mutti sem levantar suspeitas sobre todo o julgamento. Inclusive, a
confusão montada por Mutti foi tanta que, em alguns momentos, o delator foi
ameaçado com ter seu benefício anulado.60
Este ponto é crucial para entender o sistema todo. O julgamento do PAC nas
três instâncias não foi irregular em geral, mas apenas no relativo a Battisti.

IMPORTANTÍSSIMO!

FALSAS PROCURAÇÕES

Battisti conta para os jornalistas que os ativistas em fuga deixavam folhas de
papel assinadas, para que amigos e familiares as pudessem utilizar em caso de
precisar usar a autorização do fugitivo. Um uso habitual era para escrever procurações.
Como nem sempre podia saber‐se qual seria o advogado mais adequado para
contratar, o nome ficava em branco, e o procurador o preencheria quando
encontrasse o defensor certo.
Em 1979, logo que foi preso, Battisti assinou uma procuração para ser
defendido, mas esta não era em branco, porque ele estava mesmo na Itália; continha
um texto manuscrito onde dava poderes de representação a sua defesa. Quando fugiu
para França, Cesare deixou duas folhas assinadas em branco, que confiou a seus
amigos do já dissolvido PAC.
Segundo a reconstrução dos fatos feita com o concurso das lembranças de
várias pessoas, essas duas folhas assinadas foram entregues a dois advogados de
Milão, GIUSEPPE PELAZZA e GABRIELI FUGA. Possivelmente, o próprio Mutti ou algum outro
arrependido foram os entregadores destas procurações para que o tribunal pudesse
assumir que Pelazza e Fuga (que jamais viram Battisti) eram verdadeiros defensores.
O plano estava bem pensado. Se uma pessoa era julgada a revelia, numa
situação tão delicada, haveria ondas de protesto contra a condenação. Mas se ainda
essa pessoa não tinha advogados o escândalo seria maior. Então, os juízes usaram
estes falsos defensores como cortinas de fumaça para fingir que Battisti estava
realmente defendido.
Ora, essas duas procurações deviam ser falsificadas. Como fazer? A assinatura
não era problema: Battisti tinha assinado as duas folhas em 1981. E o texto? Para isso
foi usada a procuração real que Cesare escreveu em 1981. Pronto, Pelazza e Fuga já
tinham suas procurações e podiam inscrever‐se como verdadeiros defensores. Não
podia alegar‐se que Battisti foi julgado sem defesa. Os advogados eram ao mesmo
tempo defensores de outros membros do PAC, que também atuaram como delatores,
subordinados a Mutti, e confirmando as mentiras deste.
Entretanto, Pelazza não tinha interesse em fazer condenar Battisti e se sentiu
nomeio de um jogo de interesses. Escreveu finalmente uma carta onde dizia que o réu
não teve oportunidade de uma verdadeira defesa, que não poderia acontecer sem a
sua presença.

Até um dos mesmos advogados falsos, sentiu a necessidade moral de dizer que
Battisti não tinha uma verdadeira defesa.

O próprio Battisti não sabia que existiam procurações, nem advogados, nem
que estava sendo julgado! O fato foi descoberto muito depois (em 2005), por sua advogada francesa Elisabeth Maisondieu-Camus,seu advogado Eric Turcon,e a escritora
escritora Fred Vargas. Aquela procuração legítima de 1979, que estava com os
membros do PAC, foi copiada por decalque sobre cada uma das folhas em branco.
Depois foram colocadas datas diferentes (maio e julho de 1982) para evitar a suspeita
de que tinham sido “fabricadas” juntas. Ainda, outra procuração foi falsificada em
1990, para o julgamento da apelação.
A técnica francesa Evelyne Marjanne, do Tribunal de Apelações de Paris,
demonstrou, em 2005, que o exame grafológico mostrava as fraudes: as cartas
manuscritas tinham sido decalcadas da original (pois os traços se superpunham
perfeitamente, algo que tem probabilidade zero quando é feito ao acaso), e a carta de
1990 era datilografada encima de folha em branco assinada por Battisti em 1979.
Um fato que não está bem esclarecido e do qual nem Battisti nem seus amigos
advogados se pronunciam é que os advogados Fuga e Pelazza foram presos, com
acusações difusas de subversão, pelo promotor ARMANDO SPATARO (um funcionário
tipicamente vingativo e maniqueísta), e depois foram liberados. Creio que a melhor
hipótese é que sua liberdade foi negociada pela participação nesse julgamento.
62
Mas este texto não seria suficiente para expor todos os detalhes dessa fraude
brutal. Veja mais detalhes em:http://mtv.uol.com.br/drops/arquivos/Page%201.pdf

D. Falsas Provas

Somente os que acreditem cegamente no aparato policial‐judicial italiano (ou
simulem acreditar) podem ter “provas” de que Battisti cometeu alguns dos homicídios.
As únicas provas a que se refere este documento S88, são a palavra dos dois delatores
principais (Mutti e Fatone) e a dos magistrados (mais algumas confirmações frágeis
feitas pelos outros “arrependidos”.)
Não sei se o título adequado a esta seção é Falsas Provas, porque, de fato, não
existem provas! Será que algo que não existe pode ser falso?
Em alguns pontos disseminados pela S88, o redator do texto fala de que “tal
coisa foi comprovada pela balística”, “tal outra pelos rastros”, etc., mas nunca se diz o
que foi o comprovado, nem quem fez, nem onde ficou a prova, nem foram
apresentados os relatórios de perícia. O único que conseguiu “provar” o relator é que
para vários crimes se usou uma arma de mesmo calibre. Nenhum dos testes que a
tecnologia da época permitia aplicar (incluída a análise do grupo sanguíneo) foi
realizado.
Não se mencionam exames feitos no interior dos carros roubados, para
comprovar a existência de rastros dos ocupantes, ou marcas de algum tipo, ou objetos
pessoais perdidos. Fala‐se da maneira de vestir e de disfarces dos assassinos, mas não
se mencionam perícias sobre roupas, barbas postiças, perucas, etc.
Enfim, o leitor que leia com alguma atenção (não precisa muita), a parte
essencial da S88, que não ocupa mais de 80 páginas com letras grandes, perceberá que
não há nenhuma referência a provas concretas. Afirma‐se sim que tudo foi provado,
mas ninguém diz como, nem o que foi encontrado. Durante o processo de Battisti no3
Brasil, alguns advogados, operadores de direito e professores, junto com jornalistas e
outros, têm afirmado a existência de “provas claras” com grande estardalhaço. É óbvio
que nem a pessoa mais alucinada poderia ter encontrado menções de provas nesse
texto. Recentemente, porém, alguns ativistas de direitos humanos têm observado que
a veemência com que algumas pessoas se referem às “provas” do caso Battisti
evidencia que estas pessoas estão comprometidas com o governo italiano, criando
na opinião pública o consenso contra Battisti.
Pessoalmente não tenho nenhuma prova, mas pessoas estão fazendo viagens
frequentes à Itália e voltando com “novas” pretensas informações que incriminam a
Battisti. É óbvio que: (1) se essas provas existissem, a Embaixada Italiana já as teria
divulgado e já seriam de domínio público; (2) ninguém precisa cruzar atualmente o
Oceano para conseguir informação.

FALSAS DECLARAÇÕES

As falsas declarações podem dividir‐se em: (1) As informais. (2) As que
aparecem como testemunho. As informais são muitas, e quase nenhuma merece o
menor comentário, mas quero referir‐me apenas a de ARMANDO SPATARO, que por ser
um importante funcionário compromete, em suas declarações, o MP.
No jornal Corriere della Sera de 23 de janeiro de 2008, quando ainda não tinha
começado o julgamento no Brasil, este promotor diz que “Battisti executou
Torregiani”. Ora, não é de esperar‐se que um juiz e promotor com mais de 30 anos de
experiência, use termos sem o devido significado. O que a S88 diz é que Battisti é
responsável da instigação, planejamento, controle, etc., do assassinato de Torregiani.
Ou seja, é o culpado intelectual. Mas não diz que ele executou, ou seja, que empregou
a arma que matou Torregiani. Pelo contrário, o assunto de ter matado a Torregiani
ficou esquecido para que não pudesse novamente levantar‐se o problema da
simultaneidade.
Spataro, quando recém se falava de Battisti no Brasil, pensou que acusar
Battisti de executor causaria mais impressão e ajudaria a apressar as coisas. Ele não
pensava que alguém no Brasil tivesse lido os autos, nem que soubessem onde ficava4
Milão. Mas, enganou‐se. Como esta falsa declaração houve centenas, mas esta é uma
que mostra bem esta suja maneira de agir.
Quanto às testemunhas, todas as que são referidas em S88 estão nesta tabela.
Qual é a credibilidade que você daria a estas “informações”?

Nome:Duas testemunhas??
 Qualificação: Desconhecida
O Que Viu :O carro dos matadores
de Santoro saindo.
O Que Prova:Que viram um
carro branco, Simca
ou Fiat. O
encontrado depois
era Simca.
Nome:Rosanna
Trentin
Qualificação:Desconhecida. Pelo nome,
deve ser mulher.
O que viu:Acreditou reconhecer
Mutti no lugar do
motorista, mas depois
afirmou não poder
reconhecer fotos.
O que prova:Sem conclusão
nenhuma.

Nome:Menegon
Qualificação:Desconhecida, inclusive
primeiro nome e sexo.
O que viu:Os cinco viram um casal
abraçado no cenário da
morte de Santoro.
Dizem que ambos eram
jovens, e que o rapaz
era algo mais alto.
O que prova:Supondo que essas
testemunhas são
reais, prova que
realmente havia
um casal de jovens
abraçados (algo
nada especial).

Nome:Pagano,
Suriano,
Zampieri,
Linassi,
Nome:Ronco
Qualificação: Desconhecida
nome
próprio ou sobrenome?
O que viu:Viu um casal
namorando, mas lhe
pareceu suspeito.
O que prova:Prova que Ronco,
quem quer que
seja, desconfiava
de casais jovens.

Nome:Esposa de
Sabbadin
Qualificação:Conhecida
O que viu:Não testemunha nada
porque diz ter medo
O que prova:Como não declarou
nada, não pode
provar muito.
65

CADÊ PIETRO MUTTI?

Porque Mutti desapareceu da vida pública e nunca falou das torturas? Esta
dúvida é explicada pela delação premiada. A pena de Mutti foi praticamente extinta.
Ele passou alguns poucos anos trabalhando junto à polícia até que todo o aparelho de
esquerda foi destruído. Se ele tivesse dito que Battisti era inocente e que ele (o
próprio Mutti) tinha sido torturado, sem dúvida não conseguiria escapar de uma
represália de dimensões incalculáveis. O MP não precisava de todos os testemunhos
dos arrependidos. Era suficiente alguns deles e inventar em cima disso.
Numa reportagem que a revista italiana Panorama diz ter feito a Pietro Mutti, o
jornalista que redigiu a alegada entrevista se esforça por pintar uma imagem não
apenas muito humana do famoso pentito, mas também rodeada de uma espécie de
santidade. Mutti tem as mãos endurecidas pelo trabalho, é modesto, silencioso,
compreensivo.
Nega ter vivido sob falsa identidade, ou sob a proteção que a justiça concede
aos traidores de outros acusados, para evitar vinganças. O jornalista se surpreende
com a coragem do ex‐arrependido (faz sentido esta palavra?), mas não diz que Mutti
nunca precisou falsa identidade, primeiro, porque as pessoas que ele traiu,
especialmente Battisti, estão todos dispersos. Nenhum deles pertence a um grupo
armado atualmente. Além disso, por que, mesmo que use o verdadeiro nome,
ninguém encontra a Pietro Mutti?
O jornalista diz que ele faz uma vida familiar, que ganha um salário médio, que
trabalha o dia todo. Mas, não diz onde vive, como é possível encontrá‐lo, qual é seu email,
não apresenta uma foto atual. Sejam próprias de Mutti, sejam inventadas pelo
jornalista, as palavras atribuídas a ele mostram bastante do caráter sórdido daquele
julgamento. Tudo o que segue consta em Panorama:
Mutti disse que Battisti era um oportunista, um criminoso comum, não um
intelectual (sic!). Diz que ele estava com os PAC porque isso lhe dava prestígio. De
acordo com a reportagem, quem quer que seja o entrevistado, este se refere a Battisti
com desprezo, como assaltante frio, uma maneira de qualificar os “comuns” frequente
nos guerrilheiros improvisados que se acham uma elite da violência, enquanto os
outros são apenas aventureiros.
O “Mutti” gaba‐se de que suas “chiamate in correità” (ou seja, delações)
sempre foram críveis. Confessa‐se autor de um homicídio e “se engasga” ao falar nisso
e lembrar os filhos da vítima. Toda esta conversa transcorre num bar, um lugar pouco
discreto para alguém que os melhores jornalistas independentes de Europa não
conseguem encontrar. De resto, toda esta reportagem é uma repetição quase exata
das falas de Mutti registradas na SS8. Para isto, são existem duas explicações: ou autor
da matéria sabia bem a história e a escreveu com cuidado, ou realmente foi o Mutti
que nunca se esquecerá daquela sua façanha como delator.
Vários jornalistas aos que perguntei opinião (não apenas franceses, mas
também latino‐americanos), acham esta entrevista falsa, e acreditam que “ninguém
sabe” onde está o Pietro. Não é necessário ser protegido como testemunha depois de
30 anos, quando o grupo ao qual pertencia se desmanchou. Se o que ele prefere é
esquecer aquele passado violento, então tampouco ofereceria uma reportagem como
esta. A dúvida principal dos que mergulharam no assunto é se está morto ou
escondido. Pessoalmente, penso que está vivo. Não faria sentido para a polícia de
Milão mandar matá‐lo. Pessoas como Mutti há muitas em todos os cantos e
aproveitam os lucros das “chiamate in correta”, vivendo uma vida prazerosa num local
também agradável.
67

Como foi o Julgamento de Battisti

Provas Materiais

Nenhuma.

“Testemunhas” (assim chamadas):

�� De Duas se conhece nome e sobrenome.
�� De Duas não se conhecem nem nome nem sobrenome.
�� De Seis se conhece apenas um nome ou apelido.
�� Algumas são crianças e outras são doentes mentais.

São 10 no total. Destas:

�� Uma diz que não pode reconhecer fotos.
�� Outra diz ter medo de falar.
�� As duas “sem nome” dizem ter visto um carro Fiat ou Simca.
�� Outras cinco dizem ter visto um casal jovem, onde o rapaz era
“algo” mais alto que a garota.

Advogados

Desconhecidos pelo réu, com procuração falsa.

Declaração por meio de:

Tortura num começo.
Delação Premiada na fase central do processo.

Modalidade do Processo
68
Ausência do réu e desconhecimento de que estava sendo
processado.

E. Situações de Exceção

Um juízo de exceção não precisa de um tribunal de exceção. As leis que se
aprovaram durante a Estratégia de Tensão poderiam considerar‐se especiais,
comparando‐as com as que qualquer outro país da Europa. Eis o que explica Valério
Evangelista numa das reportagens que lhe foram feitas.
Por que o processo Torregiani, depois estendido a todos os casos dos PAC, não foi
regular?
Façamo‐nos claros: não foi regular senão no quadro das distorções da legalidade
introduzidas da assim considerada “emergência”. No âmbito do direito geral, o
processo estava viciado de pelo menos três elementos: o recurso à tortura para
estorcer confissão na fase de investigação, o uso de testemunhas menores de idade
ou com distúrbios mentais, a multiplicação das imputações com base nas declarações
de um arrependido de confiabilidade incerta, além de outros elementos menores.

NOVAS PENALIDADES

Itália não aplicou diretamente o estado de sítio (stato d’assedio), porque alguns
setores da própria DC (como Mariano Rumor) se opuseram, com receio de que isso
pudesse conduzir a uma ditadura. Entretanto, não houve problemas para emitir
decretos e aprovar leis que tornassem o sistema repressivo ao máximo. Não existiu
uma lei como o AI5 brasileiro, mas os efeitos do Ato se distribuíram em leis várias.
Em alguns casos (como no julgamento de Battisti no STF em 09/09/2009), os
procuradores da Itália insistem em afirmar que o país não gerou um estado de
emergência arbitrário. Ora, tampouco os opostos ao OG afirmam isso. De fato, os
governos italianos entre 1969 e 1980 tiveram apóio político para introduzir leis
específicas que evitassem o aspecto chocante do estado de sítio*.

* L’Orchestre noir (A Orquestra Preta), o documentário difundido em 13‐14/01/98 pela rede Arte
uma idéia do que foi o Estado Italiano nos anos 60 e 70, e especialmente seu grau de perversidade e
�� Em maio de 1975, aprova‐se a lei proposta pelo deputado Reale, que permite aos
policiais ignorar os poderes dos magistrados, um fato que causou grande escândalo
em nível mundial.
�� A polícia poderá arrestar qualquer um com base no critério pessoal, sem mandato
judicial.
�� O suspeito poderá sem interrogado sem a presença de um advogado, o que viola o
artigo 3 de Constituição Italiana.
�� Em setembro de 1979, o decreto de COSSIGA estende a prisão preventiva e autoriza
os grampos, quase sem nenhuma restrição, contra os artigos 15 e 27 da Constituição.
�� Os delatores obtêm vantagens extras, pudendo ganhar anos em proporção às
delações feitas. Isto induz a muitos deles a denunciar tantas pessoas como precisam
para abater toda sua condena.
�� Um decreto de abril de 1974 autoriza a prisão preventiva progressiva de indiciados
em julgamento, passando de 4 anos no primeiro, para 6 no segundo e 8 no último. A
pena pode ser aumentada até 12 anos, por acusações de terrorismo.
�� O livro 2, título 1 do código penal da época (que possui atualmente poucas
modificações) dedica 73 artigos a punir crimes políticos da mais diversa e difusa
natureza, incluindo associação subversiva (art. 270) e conspiração (art. 305).
�� No mesmo documento, alguns artigos punem “delitos fetichistas” como vilipendiar a
nação ou as cores da bandeira, anacronismos já eliminados os países mais avançados.
Esta sacralização de pessoas jurídicas ou de símbolos foi “amenizada” em 2006,
reduzindo a pena máxima a dois anos!

Além disso, os processos são tão massivos que grande parte dos réus deve
esperar de maneira indefinida. Em 1978, 62% aguardavam julgamento. Em 1980, as
prisões albergavam 4 mil detidos políticos.
O mais aberrante, porém, foi a criação de uma classe especial de crime.
Violando o mais básico princípio jurídico de Ocidente (A pena não passa da pessoa do
infrator), todos os membros de uma quadrilha podiam ser punidos pelo crime
individual cometido por um deles10.
manipulação maquiavélica. (Comentário da jornalista ANNE SCHIMEL em LE MONDE DIPLOMATIQUE, abril de
1998)
70
F. Impunidade dos Stragisti

Se Battisti e muitos outros de diversos grupos de esquerda foram condenados
sem provas (em outros casos, com poucas provas), todo o oposto aconteceu com os
megaterroristas, fossem neofascistas (a maior parte) ou membros das forças armadas
e de segurança, ou de partidos políticos.
Os stragi e os assassinatos com eles vinculados poucas vezes puderam ser
apurados, pois sua investigação foi congelada ou ficou pendente até os dias de hoje,
sem que exista uma data certa para sua retomada. Na tabela seguinte, vou expor de
maneira esquemática a situação. Para lembrar os detalhes de cada strage, veja a
tabela do capítulo 1, pois o alinhamento é o mesmo.
71
Data :12/12/69
Evento: Massacre de
Piazza Fontana
em Milão.
Passos da Investigação: O governo culpou aos anarquistas.
São detidos o operário Pinelli e o
dançarino Valpreda, ambos
anarquistas. Pinelli é assassinado
pela polícia, sendo lançado (vivo ou
morto?) de um 4º andar. Valpreda
fica preso durante anos, sem prova
nenhuma.
Resultado:Em 1999, o General Giandelio Maletti, exchefe
de um SSc confessou que Ordine
Novo, filiado ao OG, cometeu o atentado
para culpar à esquerda.
De fato, os fascistas de ON, chamados PINO
RAUTI, FRANCO FREDA e GIOVANNI VENTURA são
detidos. Comprova‐se que Freda comprou e
guardou os explosivos. Em 74, começou a
ser julgado. Em 78, sumiu. Em 79 foi
condenado a perpétua em ausência. Foi
extraditado de Costa Rica. Em 81, trocaram
a prisão perpétua por 15 anos. Em 85 foi
absolvido. Ventura também foi absolvido.

Data:08/09
Evento:Bombas-Teste em trens
Passos da investigação:Não houve investigação. Estes fatos
foram atribuídos a esquerda como
rotina. Soube‐se que os autores
eram de Ordine Novo.
Sem Resultado

Data:12/12/69
Evento:Bombardeios
simultâneos
em Roma.
Sem dados

Data:22/07/70
Evento:Bombardeio a
um Trem na
Calábria.
Sem dados

Data:1972
Evento:Bombardeio de
três policiais.
Passos da investigação:Como era habitual, o primeiro
passo foi procurar membros da
esquerda, mas a investigação não
progrediu. Em 1984, VINCENZO
VINCIGUERRA, já preso, confessou
ter cometido o ataque.
Resultado:Este é o único dos grandes atentados da
direita, cujo autor não foi liberado.

Data:17/05/73
Evento:Ataque a
Quartéis da
Polícia
Passos da investigação:Atribuído a GIANFRANCO BERTOLI que
se identificou como anarquista.
Em 1990, descobriu‐se que era um
informante do SID e membro de
Gladio. Os SSc negaram
participação no fato. Em 2002, um
ex‐diretor do SISMI disse que
Bertoli era sim um informante do
SIFAR e do SID.
Resultado:Bertoli esteve preso vários anos. Liberado,
morreu em 2000. Considera‐se improvável
que tenha agido por própria iniciativa, mas o
processo foi encerrado.
Resultado Incompleto

Data:11/73
Evento:Explosão de
Aeronave Argos
Passos da investigação:
Não Apurado
Segundo altos mandos militares, o atentado
foi responsabilidade do OG. Nada mais se
conhece.
Sem Resultado
72
Data:05/1974
Evento:Bombardeio de
uma passeata
antifascista.
Sem Resultado

Data:28/05/74
Evento:Massacre in
Piazza della
Loggia.
Em 03/2000, a justiça acusou de novo
a BERTOLI, e considerou seus cúmplices
três membros de Ordine Novo, MAGGI,
BOFELLI e NEAMI, e um coronel do
exército. Bertoli foi condenado a
perpétua, mas faleceu antes.
A Suprema Corte admitiu que o crime
provinha dos fascistas, mas afirmou não
ter provas para condenar aqueles
quatro.
Sem Resultado

Data:08/74
Evento:Bomba em
Trem Italicus.
Mario Tuti, fascista suspeito do ataque
ao trem, autor de outros atentados
menores, foi condenado a 20 anos.
A Suprema Corte anulou a sentença, e
Tuti foi absolvido na apelação.
Sem Resultado

Data:20/08/80
Evento:Bombardeio na
Estação Central
de Bolonha.
Os magistrados suspeitaram de
neofascistas, mas não puderam
conseguir provas dos SSc.
Foram convictos VALÉRIO FIORAVANTI e
FRANCESCA MAMBRO (membros do NAR)
como autores, e LICIO GELLI, seu
secretário e vários oficiais por
acobertamento.
Fioravanti foi condenado a perpétua,
mas em 1999 recebeu liberdade
condicional e está livre desde abril de
2009.
Sua esposa, Francesca Mambro, acusada
de 95 assassinatos, e foi colocada em
liberdade condicional desde 2008. Os
outros implicados não foram
condenados.
Resultados Parciais

Data:23/12/84
Trem
Bombardeado
em Movimento.
Nenhum Resultado

Observação Importante

Olhando na coluna da direita, se pode ver que a maior parte dos processos sobre os
stragi não obteve resultado nenhum, e que apenas um teve resultado completo por
enquanto. Deve analisar‐se o capricho dos juízes, dos tribunais e da Suprema Corte
para não condenar a ninguém sem uma quantidade esmagadora de provas. Inclusive,
mesmo com excesso de provas, alguns indiciados, como Tuti, ficaram livres.

REFERÊNCIAS

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BELLINI, F. & G. BELLINI. 2005. Il segreto della Repubblica. La verità politica sulla strage di Piazza
Fontana, edited by P. Cucchiarelli. (Milan)
BRAMBILLA, M. 1995. Interrogatorio alle Destre. (Milan)
73
BULL, ANNA CENTO.2007. Italian Neofascism, the Strategy of Tension and The Politics Of
Nonreconciliation (NY)
FASANELLA, G. & C. SESTIERI C/ PELLEGRINO, G.. 2000. Segreto di Stato: La verità da Gladio al caso
Moro. (Turin)
FRATTINI, ERIC. 2009. A Santa Aliança (São Paulo)
GIANNULI, A. AND N. SCHIAVULLI. 1991. Storie di intrighi e di processi: dalla strage Di Piazza
Fontana al Caso Sofri. (Rome)
GOÑI, UKI. 2004. A Verdadeira Odessa (Rio de Janeiro)
SPOTTS, FREDERIC & WIESER, THEODOR. 1986. Italy, a difficult democracy: a survey of Italian politics
(New York)
REGISTRY OF THE EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. 2003. Admissability Decision in the case of
Sofri and Others v. Italy
WILLIAMS, P. L. 2003. The Vatican Exposed: Money, Murder, and the Mafia. Amherst, NY.
Commissione parlamentare d'inchiesta sul terrorismo in Italia Aqui
74


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