Antes de Moro e Dallagnol, houve Sérgio e Deltan
Os rumos da operação Lava Jato são objeto de diversas críticas de diferentes pontos e perspectivas. A nossa, parte da constatação, um tanto quanto óbvia, de que, um dia, Sérgio Moro e Deltan Dallagnol foram estudantes e de que o ensino jurídico tem, em alguma medida, responsabilidade pela forma como esses aplicadores do direito exercessem o poder que lhes foi confiado. Portanto, em que pese os abusos no exercício de ambos, esses não serão o objeto de estudo, ao menos não diretamente. O foco é a crítica ao tipo de formação em direito que “permite” que os estudantes recebam seus diplomas sem a mínima compreensão acerca do real funcionamento das instituições e agentes que compõe o Sistema Penal.
Evidentemente, trata-se de dois adultos, então, por que falar na responsabilidade do ensino jurídico, haja vista, a autonomia de ambos no exercício de suas funções? Por quê, como o próprio nome sustenta, o papel da faculdade de direito é formar o estudante. Logo, cuida também de formar a maneira como esse vê: si mesmo; os sistemas jurídicos; o papel das instituições e dos atores que as compõem. Acima de tudo, cabe, à faculdade, ensinar o exercício de poder socialmente cônscio.
Tal como o médico sabe de seu dever para com o estranho que encontra passando mal na rua, o aplicador do direito deve ter consciência de seu papel para com a comunidade e não somente para com seu cliente, assistido ou jurisdicionado.
O grau de distorção observado na Lava Jato só é compreensível diante de uma considerável alienação dos personagens. Alienação quanto aos traços característicos do funcionamento do Sistema Penal em qualquer lugar e em qualquer tempo; quanto aos seus papéis institucionais; e quanto a suas responsabilidades profissionais e sociais.
Não ignoramos que a faculdade não está sozinha nessa história. Com certeza, os processos seletivos para cargos públicos e as preparações que esses demandam tem sua generosa parcela de responsabilidade no transtorno dissociativo da realidade que afeta a maior parte dos atores do Sistema Penal. Entretanto, entendemos que a formação inicial tem um papel maior, eis que é a primeira. Nesse sentido, entendendo o desvio como fruto da alienação, temos que, caso houvesse um contato direto com a realidade de seletividade, flexibilização de garantias constitucionais e criminalização da pobreza, característicos do Sistema Penal pátrio, durante a graduação, esses atores seriam incapazes de se comportarem como se comportam.
Em síntese, o ensino jurídico formalista, por ser neutro, distância o direito da realidade na qual ele é aplicado. Esse distanciamento, por sua vez, produz juízes que agem como promotores e promotores que agem como legisladores, pois nunca foram “formados” quando ao exercício socialmente responsável do poder advindo do saber jurídico e da posição que ocupam.
Neutralidade, formalismo e realidade
O professor Daniel Bonilla sustenta que o ensino jurídico formalista é uma educação descontextualizada (BONILLA, p. 284), que não considera relevantes as perguntas sobre a legitimidade das normas e das instituições (BONILLA, p. 262). Zaffaroni aborda, em “Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal”, a questão da legitimidade no exercício do poder dos juristas face a deslegitimação do Sistema Penal graças a seu funcionamento seletivo.
Nesse sentido, a legitimidade dos juristas está na responsabilidade desses no uso de seus poderes para conter o poder punitivo ilegítimo, trata-se, então, de um poder limitador. Assim, tal como a Cruz Vermelha Internacional tem uma responsabilidade em conter os efeitos do conflito armado, os juristas têm a responsabilidade de conter o poder de punir. Ignorar essa responsabilidade ou se alienar dela implica: perda de legitimidade; renúncia aos motivos éticos que fundamentam o exercício do poder limitador; e redução do poder dos juristas a um exercício utilitário (ZAFFARONI, 1991, p. 263-267).
Zaffaroni trata de uma prática que renunciou aos seus motivos éticos e que, por isso, perdeu a legitimidade, restando a utilidade para o poder. Não seria justamente o que ocorre na Lava Jato, na qual aplicadores do direito se eximem frente ao poder punitivo, instrumentalizando-o para atingir o fim de “combate” à corrupção? Tal prática só é possível dentro da lógica utilitária alienada das questões relacionadas à legitimidade moral do exercício do poder dos juristas.
Moro e Dallagnol não são formalistas propriamente ditos. Afinal, nem a exegese francesa nem o historicismo alemão defende tamanha distorção. Entretanto, é o formalismo que condiciona a atmosfera propícia para que tal prática utilitária prospere. Afinal, o conceito de direito, ensino jurídico e prática profissional estão interligados (BONILLA, p. 268). A prática formalista, dissociada de seus motivos éticos (Zaffaroni) ou das questões relacionadas à legitimidade moral e política das normas e das instituições (Bonilla), só é possível dentro do universo que ela mesma cria.
Em outras palavras, só é possível haver uma prática com o nível de autoengano e alienação observado na práxis brasileira dentro de uma concepção de direito formalista, partindo de um ensino jurídico formalista. O estado de coisas da Lava Jato só é factível dentro de uma lógica na qual os agentes públicos estão alienados dos motivos éticos do exercício de suas funções, restando apenas a utilidade para o poder. Porém, ninguém acorda alienado. O ensino puramente teórico-legalista gera uma massa de profissionais incapaz de se engajar no exercício profissional crítico, na discussão de nossos problemas institucionais e na produção científica do saber penal razoavelmente bem-feita. Resta configurada a responsabilidade do ensino jurídico.
Ensina-se a questão criminal, sem o devido olhar crítico das arbitrariedades políticas, sensos comuns e preconceitos que permeiam as escolhas legislativas sobre o que é tipificado como delito e aplicado como direito. Por conseguinte, o ensino jurídico criminal se amolda ao formalismo irrefletido, inútil em suas representações oníricas da realidade de aplicação da lei penal e incapaz de produzir respostas capazes de construir um diálogo na busca da solução de nossas questões.
O que mais explica um juiz que fixa a pena em 4 anos e 1 mês para que o réu não tenha direito ao regime aberto, caso semelhante, inclusive, ao de alguns ministros nos tribunais superiores? Apenas alguém totalmente alheio à consciência do exercício seletivo do poder punitivo e de sua responsabilidade na sua contenção é capaz de agir dessa forma. Moro e Dallagnol são a ponta do iceberg, o arquétipo que representa toda uma massa. A renúncia aos motivos éticos por boa parte dos aplicadores do direito gera uma prática profissional formalista e, necessariamente, utilitária. O que varia é o fim que se pretende atingir com a “utilidade (para o poder) ” (ZAFFARONI, 1991, p. 263), por vezes, o “combate” à corrupção, outras, a pura vingança social.
A superação de uma concepção de direito formalista que condiciona um ensino jurídico descontextualizado e, por conseguinte, menos relevante na descrição da aplicação da lei penal e na prescrição de soluções na contenção do poder punitivo, passa pela aproximação do mundo da vida com o mundo do direito. O juiz que, hoje, orgulha-se de conduzir coercitivamente suspeitos contra legem, um dia, sentou-se nos bancos da faculdade de direito e ouviu alguém falar sobre Direito Penal e Processual Penal. O promotor que, hoje, posa para fotos midiáticas, um dia, teve uma aula sobre devido processo legal. Entretanto, caso a abordagem desses conteúdos se mantiver descontextualizada, longe de pessoas reais com problemas reais, o populismo punitivo seguirá sem ser confrontado pela realidade de miséria humana que ele mesmo condiciona.
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