Prender para colaborar ou colaborar para não ser preso é a tônica do modelo “Moro” de processo penal. O acusador fica com a faca, o queijo e todas as cartas para negociar. Não aceita a negociação, segue-se instrução processual e decisão condenatória com pena alta: xeque-mate. Depois de condenado, com a nova interpretação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a pena se cumpre imediatamente ao julgamento em segundo grau, o acusado é constrangido a colaborar. Não delatar é estratégia dominada, para usar a gramática da Teoria dos Jogos.
É justamente aí que reside a troca. Os acusadores, em nosso nome, perdoam, dão descontos de 80% da pena, autorizam prisão domiciliar sem retorno ao cárcere (ainda que sem qualquer previsão legal que autorize), mediante: a) arrependimento e confissão; b) auxílio probatório com “entrega” de comparsas; c) multa pecuniária e/ou devolução de dinheiro.
O padrão brasileiro de negociação faz com que o acusado devolva pequena parcela dos valores fruto da conduta criminosa, entregue alguns envolvidos, fique em prisão domiciliar durante bom tempo, excluindo parentes e amigos das malhas da operação. O foco, então, longe de punir, é recuperar, muito parcialmente, os recursos apropriados, evitando, com todo o cuidado, que sejam os colaboradores inseridos na prisão depois de “arrependidos”. As penas efetivas, em regra, são menores do que de um furto de relógio, na rua, promovido em coautoria por agentes reincidentes (CP, artigo 155, IV). Enfim, o jogo é performático e manipula a maioria. O Ministério Público Federal está trocando centenas de anos de prisão por dinheiro e perspectivas de mais gente ser engolfada pelas investigações.
É interessante como gostamos de “colchas de retalho” sem qualquer coerência sistêmica, regidas apenas por critérios utilitaristas e eficientistas. Como aceitar esse amplo espaço de negociação em um sistema cuja acusação é regrada pelos clássicos princípios de obrigatoriedade e indisponibilidade? Recorrendo a arremedos argumentativos e criando categorias processuais híbridas e malformadas, como obrigatoriedade mitigada, indisponibilidade regrada etc., em vez de assumir e incorporar — como todos os ônus e bônus inerentes — a disponibilidade, oportunidade e conveniência da ação penal (com seus respectivos mecanismos de controle de atuação). Como fixar uma pena de 12 anos sem prévio processo? E o princípio da necessidade (nulla poena sine iudicium)? Como determinar um regime de cumprimento desta pena como sendo o de “prisão domiciliar”, quando isso jamais foi contemplado no sistema jurídico brasileiro? Definitivamente, vamos adotar a legalidade a la carte? Porém, temos todos consciência dos riscos dessa opção?
A fé sem questionamento da lógica da barganha, no processo penal brasileiro, está se infiltrando como verdade consolidada em face dos aparentes resultados que apresenta. Talvez seja o caso de percebermos que a “delação à brasileira” é um emaranhado de possibilidades, em que a prática está dando as coordenadas do que deveria ser previsto em lei. Os ditos resultados, vistos bem de perto, não servem como justificativa de aceitação democrática, até porque monetariamente pífios em face do volume, além dos nefastos efeitos que a operação promove na economia, salvo para os que se entregam à fantasia das aparências ou encontram-se “cegos” pelo ódio ideológico.
O império da barganha pretende transformar o processo penal em grande mercado de pena e culpa. Talvez tenham razão, talvez não. O que pretendemos, aqui, é buscar compreender como os grupos de pressão e as instituições estão exercendo o domínio no nosso cotidiano, ou seja, na forma como pensamos, conversamos e consumimos o produto crime. O comportamento de quem duvida da fé, muitas vezes, é tido como enfrentamento da “causa da corrupção”, para os quais, os arregimentados, sem hesitação, postam-se com ódio contra os não crentes. Os que estão de fora do movimento, da “onda delatória”, são tratados como desertores, ingênuos ou inimigos. Qualquer oposição é tida como afrontamento aos líderes carismáticos que não querem sofrer oposição, já que buscam forçar obediência e conformidade. Declarou-se guerra a quem não está em guerra contra a corrupção.
Aliás, ou a delação premiada é o sintoma da incapacidade de o Estado investigar e produzir prova ou é jogo de cena, porque se há boa investigação, provas robustas, sentenças condenatórias, negociar com um culpado por quê?
As aspirações expansionistas penais não toleram qualquer modo de vida democrático e que tenha o pluralismo das ideias como pressuposto, já que você deve estar em um dos lados: corruptos ou caçadores de corruptos. O maniqueísmo é evidente. A liberdade de expressão ainda é marco democrático que nos autoriza a dizer que os pressupostos teóricos da delação à brasileira estão equivocados e que as práticas reais são performáticas, especialmente porque feitas à sorrelfa. O modo como são produzidas as “colaborações” deveriam vir à público também, para que se saiba a maneira como um representante do Estado negociou o direito público de exercício de ação penal. A transparência pode levar à confirmação da postura democrática ou ao descrédito de muitos. Imagine-se áudios da negociação “vazados” por aí…
Não se trata de defender a corrupção nem de se engajar em cruzada anticorrupção, já que, no fundo, a postura que adotamos é de certo ceticismo contra os que fazem disso a “causa” de suas vidas, porque, no fundo, boa parte da história nos mostra que os que são tão cheios de certezas “odiantes” lutam contra seus fantasmas internos. São sujeitos que podem estar lutando para manter a sustentação imaginária complexa, para os quais o agir no exterior, punindo o outro, pode ser a única possibilidade de dar conta de sua propensão oculta. Como aponta Stuart Sim: “Os detentores do poder desses impérios tradicionalmente exibem um ódio patológico à oposição como uma expressão de sua devoção, e nossos adeptos do século XXI não são uma exceção”[1].
Quem é portador da verdade não se preocupa com os argumentos e em dialogar com o dissidente, no fundo, tido como desertor, porque a crença sem questionamento faz parte do seu modo de ser. Podemos nos submeter passivamente ao império da crença ou, quem sabe, adotarmos atitude mais cética, duvidosa, das maravilhas que a delação premiada traz para os bons. A escolha é sua. Esperamos não ser conduzidos coercitivamente, nem conduziremos ninguém, a concordar. A postura cética não aceita o fundamento único e absoluto, justamente porque no início está a crença. Está um ato de fé e não de razão, para o qual uma autoridade toma o lugar, e diz.
Sustentar o direito de oposição, de minoria, de advogado do diabo, parece ser a postura cética de quem não se converteu à Igreja da Delação Premiada. Sobra-nos um resto de dúvida razoável sobre as práticas e técnicas, uma leve suspeita sobre os benefícios que tanto divulgam. O tempo dirá. E respeitamos os devotos da Igreja da Delação Premiada, porque fé, da ordem da crença, não se discute com a razão.
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