Blog I'unitá Brasil

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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Temer relativiza responsabilidade do Estado no massacre de Manaus

Após dias em silêncio, peemedebista se manifestou em reunião com núcleo institucional do governo






Michel Temer (PMDB) rompeu o silêncio que mantinha desde a morte dos 56 presos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), localizado em Manaus (AM). O presidente não eleito relativizou o papel dos entes públicos no segundo maior massacre da história do sistema carcerário brasileiro, já que a unidade era privatizada. A declaração foi dada na manhã desta quinta-feira (5).
A fala do peemedebista ocorreu na abertura da reunião do núcleo institucional do governo, onde Alexandre de Moraes (PSDB), ministro da Justiça, apresentaria o plano de segurança elaborado por sua pasta aos demais integrantes do gabinete de Temer.
Responsabilidade
Após manifestar sua solidariedade às famílias das vítimas do que chamou de “acidente pavoroso”, Temer diminuiu a responsabilidade estatal sobre as mortes, mesmo que os agentes públicos do governo do Amazonas, segundo ele, estivessem munidos de “dados e acompanhamentos”.
“Em Manaus, o presídio era terceirizado, privatizado. Não houve uma responsabilidade muito objetiva e clara dos agentes estatais”, afirmou.
Mais prisões
Temer anunciou medidas, na esfera federal, em relação ao sistema penitenciário. A aposta do governo segue sendo o reforço do encarceramento.
O peemedebista lembrou o repasse bilionário aos estados com o objetivo de que, ao menos mais uma prisão seja construída por unidade federativa.
Anunciou também a construção de cinco novos presídios federais, sem prazo de início e conclusão de obras. Segundo o próprio Temer, a medida também demandaria uma cifra bilionária.
Histórico
Em 1º de janeiro (domingo), um conflito entre as facções rivais Família do Norte (FDN) e Primeiro Comando da Capital (PCC) no Compaj terminou com 56 detentos mortos, a maioria deles decapitada. Além das mortes, a rebelião resultou em 112 foragidos, conforme informou a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM).
Segundo o advogado Glen Wilde do Lago Freitas, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem de Advogados do Brasil (OAB), a rebelião já era esperada pelo estado do Amazonas, já que a facção local (FDN) ameaçava a facção paulista (PCC) há mais de um ano.
O Compaj está localizado no km 8 da BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), e tem capacidade para 454 detentos, mas 1.229 presos abrigavam o local no momento do conflito - o triplo da sua capacidade.
Edição: José Eduardo Bernardes

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Edgar Morin: é preciso educar os educadores

por
 Andrea Rangel



Mudanças profundas ocorreram em escala mundial nas últimas décadas do século 20, entre elas o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e o fim da polarização ideológica nas relações internacionais.
Diante desse cenário, o sociólogo francês Edgar Morin, hoje com 95 anos, defende que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, Morin propõe um dos conceitos que o tornaram um dos maiores intelectuais do nosso tempo: o da complexidade.
Em entrevista, o pensador critica o modelo ocidental de ensino que, segundo ele, separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. Para Morin, as disciplinas fechadas ensinam o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas impedem a compreensão dos problemas do mundo e de si mesmo. Confira abaixo:
Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação?Edgar Morin: 

A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal" de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor.
Então eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado.
É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.
Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual?
Edgar Morin: 

O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo.
O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.

O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento?
Edgar Morin: 

Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar.

Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana.
O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis.
A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.
O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento?
Edgar Morin: 

As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa.
O meu livro O homem e a morte é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.

Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional?
Edgar Morin: 

É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional.

O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise econômica que a Europa está vivendo atualmente.

A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê?
Edgar Morin: 

Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento.
Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.
Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino?
Edgar Morin: 

O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão.

A carnificina de Manaus irá se repetir enquanto a política de drogas for de guerra

Por Brenno Tardelli




As lágrimas molham o rosto de quem não perdeu a capacidade de se indignar neste início de ano. Os fogos de artifício e de arma que rasgaram a virada do réveillon deram o tom do que estava por vir em seguida: a maior matança no sistema carcerário desde o inominável episódio do Carandiru, em 1992.
Tento fazer um exercício de previsão para imaginar como será no futuro, daqui algumas décadas, quando olharem para o hoje e para essa matança que aconteceu por conta de disputa pelo controle de drogas. Será que a criminalização chegará até lá? Se o absurdo dessa realidade racista que apenas serve para matar e encarcerar pessoas pobres e negras já está escancarado nos tempos presentes, como será quando a política de drogas atual for superada? 
Só sei que o dia de superação da guerra às drogas não está próximo e a matança não tem hora para acabar. Pelo contrário. Basta perceber que o responsável pelo Ministério da Justiça atual usa seu tempo para ir ao Paraguai capinar lotes de maconha e fala em extirpar a droga da América Latina, fazendo o país passar vergonha internacionalmente. Fora do campo do ridículo, o ministro na última semana esvaziou o Departamento e o Fundo Penitenciário para contratar sua própria milícia estatal. Se não estivéssemos tão acostumados com o absurdo, talvez isso fosse um bom motivo para afastá- lo do cargo.
Mas não se deve pessoalizar o presente triste e o futuro desanimador em Alexandre de Moraes e em seu chefe, Michel Temer. Guerra às drogas é coisa antiga no país e os governos do PT, do PSDB, passando pelos generais, sempre capitalizaram nela e no tentador punitivismo. Dilma, em seu último dia no cargo, negou o indulto para mulheres acusadas de pequenos tráficos e, no primeiro mandato, afastou o responsável pela Secretaria Nacional de Política de Drogas por ele ser favorável à legalização. Lula apenas passou para o discurso dos direitos humanos no campo processual sentir o hálito da inquisição em seu rastro e Fernando Henrique, hoje estrelando o documentário Quebrando Tabu, fez exatamente nada para quebrar o tabu enquanto esteve no palácio do planalto. 
O fracasso histórico torna a insistência de Moraes e de seu chefe, Michel Temer, ainda mais revoltante. Eles, assim como seus antecessores, entendem que melhor fica para a mídia e para o voto se implementarem a política de drogas com “vigor”, “firmeza” e “mais prisão”.
São inúmeros estudiosos que identificam o uso da prisão, ou seja, do Direito Penal como proposta de solução para os problemas da humanidade pelos políticos. Esse uso do aparato repressivo estatal como plataforma de campanha e de política de estado recebe o nome de Populismo Penal. E é nesse pesadelo que estamos inseridos hoje.
Não há populismo penal sem um Judiciário repressivo que o sustente. Nesse sentido, estamos lascados. Não é culpa só do Temer, do Moraes, da Dilma, do Lula ou do FHC. Não é culpa apenas dos políticos sentados no legislativo que sobem aos plenários para fazerem discursos inflamados contra a bandidagem e por mais polícia, mais porrada. A praga somente é possível porque o que eles falam é superado na prática pelo Judiciário, que aprofunda a guerra às drogas em níveis assustadores.
Como se não bastasse – e isso é um mal dos anos mais recentes – esse mesmo Judiciário reacionário, encarcerador e violador da Constituição se vê no centro das lentes midiáticas e do cenário político atual. O protagonismo dos agentes da justiça catapultaram membros populistas das carreiras que fazem campanha por leis mais encarceradoras, as quais retiram direitos de defesa e mergulham a guerra às drogas em níveis até então desconhecidos.
No campo da recuperação mora outro pequeno detalhe que indica a distância da melhoria As comunidades terapêuticas, ligadas a grupos católicos e evangélicos, que demonizam o usuário ao invés de tratá-lo também rendem grande capital político e para superá-las seria preciso se indispor com as religiões organizadas. Não parece ser o caso do momento atual.
Há resistência em todos esses setores. A Pastoral Carcerária entra em presídios todo santo dia para denunciar as consequências da guerra às drogas. Juízes e Promotores compromissados com a Constituição arriscam suas carreiras em estruturas macartistas que os perseguem por suas opiniões. Movimentos sociais e ativistas políticos buscam diálogo para defender o óbvio e fazem isso de forma obstinada. Infelizmente, essas pessoas não estão no espaço decisivo do poder – na verdade, são caçadas por ele. 
A noite, como definiu o Juiz de Direito Marcelo Semer, está e continuará longa. Só temos que chorar pela tragédia e continuar lutando para que estejamos vivos quando o dia raiar.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

É importante lembrar que, numa república, ninguém pode se eximir de controles

Por Eugênio Aragão




Quem não deve não teme. Não é, senhores procuradores e magistrados?
Esta é a frase preferida de juízes e membros do Ministério Público, quando a defesa se insurge contra provas extravagantes admitidas assimetricamente a favor da acusação: quem não deve, não teme. Em seu nome se cometem as maiores arbitrariedades, pois bem se sabe que em Pindorama basta estar no lugar errado, na hora errada para ter razões de sobra para temer, devendo ou não.
Mas, como diz o dito popular, pimenta no olho dos outros é refresco. Suas Excelências estão em polvorosa porque a Câmara dos Deputados resolveu, na última versão do texto do PL 4850/2016 (sobre as famigeradas 10 medidas do MPF), incluir a previsão de crimes de abuso de autoridade por juízes e membros do ministério público. Que tal acalmá-los, lembrando-lhes de seu bordão: quem não deve, não teme?
A revolta se valeu de argumentos toscos, como o de que o Congresso estaria a desrespeitar a sociedade, que sufragou o projeto com iniciativa popular de mais de 2 milhões de assinaturas. Ora, em primeiro lugar, o projeto é de iniciativa popular só na forma, com coleta populista das assinaturas. Mas foi gestado sem debate, em gabinetes do MPF, por um grupelho de obstinados com o tema do "combate" à corrupção. Contou com intensa propaganda institucional, com uso de recursos públicos. Está mais para iniciativa chapa-branca do que para iniciativa popular. E, em segundo lugar, a indignação pressupõe arrogantemente que o legislativo é obrigado a acolher a proposta no seu texto original, sendo-lhe vedado promover emendas. Ora, iniciativa popular (se este fosse o caso) não se confunde com o processo legislativo. Quem quer tolher o Congresso Nacional no seu poder constitucional de discutir e emendar propostas que lhe são submetidas nada entende da atividade legiferante e nenhum respeito tem pela democracia representativa.
O direito penal reflete a cultura predominante numa sociedade. E se iniciativa houve de ameaçar com sanções penais juízes e promotores que saem da linha, é porque havia demanda para tanto. Ninguém pode negar que as forças tarefas do MPF e a Justiça Federal têm agido de forma pouco ortodoxa, ou, até, controversa na coleta de provas e na negociação de delações premiadas. Têm conscientemente vazado informações sobre os processos que destroem reputações enquanto ainda predomina a presunção de inocência sobre investigados. Têm promovido buscas em escritórios de advocacia sem a cautela de preservar sigilo profissional. Têm interceptado conversas entre advogados e seus constituintes em inusitada marcha contra a ampla defesa. Têm requerido ou deferido a condução coercitiva de suspeitos sem qualquer intimação prévia para comparecer. Têm vazado sistematicamente informações estratégicas auferidas no curso de inquéritos policiais, tais como o teor de conversas telefônicas interceptadas.
E o que esperam agora? Que a soberania popular venha a lhes passar a mão na cabeça por essa investida continuada contra direitos fundamentais? Nao. Vão colocar freios. De outro modo, caminharíamos para o descontrole estrutural do estado brasileiro.
E não adianta vir com a conversinha de que essas medidas não passam de retaliação de corruptos. É muito fácil, como o MP sempre tem feito ultimamente, rotular os adversários de bandidos ou corruptos. E deu no que deu: a polarização da sociedade naqueles que se imaginam "do bem" e os que são propensos à criminalidade, os que não passariam num teste de integridade que querem obrigatório para servidores públicos.
É verdade que há hoje expressiva bancada no congresso de canalhas que se elegeram com o fundo multimilionário arrecadado por Eduardo Cunha para o efeito de construir uma célula de "no mínimo 200 deputados" para chamar de seus. Estes 200 se juntaram a outros desqualificados que montaram a sólida maioria do golpe. Disso, claro, se aproveitou uma oposição que não sabe perder eleições.
Mas há, também, e não são poucos, os parlamentares dedicados à causa pública que não são corruptos. E boa parte destes não tolera os abusos advindos de operações em forças tarefas e um judiciário leniente com as extravagâncias dos seus e daqueles que os cercam. Chegaram à conclusão legítima de que se cedeu demais às chantagens populistas dessa aristocracia do serviço público.
Quando, na reforma do judiciário, no curso na elaboração da EC 43/2004, se introduziu no debate a criação dos conselhos nacionais de justiça e do Ministério Público, parlamentares cogitaram de compô-los com representantes da sociedade civil e da academia. O veto político da aristocracia judicial e parajudicial não tardou de vir, com advertências de gente do excelso sodalício de que uma tal iniciativa poderia se considerar maculada de inconstitucionalidade porque viciaria a independência dos poderes. Nada mais hilário, a representação do povo, de quem emana todo poder, ser causa de inconstitucionalidade!
O resultado desse veto está aí: temos dois órgãos de controle "externo" que pouco têm de externo. São parte da mesma visão endógena das respectivas corporações. E punem ou poupam quando querem e lhes é politicamente conveniente, com a agravante de que esse "politicamente", na maioria dos casos, se resolve no apoio ou na rejeição das corporações a que pertencem. Há pouquíssimo espaço, num colegiado desses, de se firmar uma maioria contramajoritária a repudiar manobras corporativistas.
No âmbito interno de cada instituição do poder judiciário e do Ministério Público a situação é ainda pior, com o governo da casa eleito pelos pares. Membros do Conselho Superior dos diversos ramos do Ministério Público se esmeram por serem aplaudidos pelos colegas nas decisões que tomam. Vêem-se muito mais como representantes de uma categoria do que como atores do governo da instituição. Governo é controle. É capacidade de tomar decisões racionais. Com membros do colegiado escolhidos pela simpatia à causa corporativa, não há governo, não há controle e, evidentemente, não há accountability.
E esse quadrou tornou-se completamente disfuncional com a pretensão de eleição corporativa do Procurador-Geral da República, retirando do máximo mandatário do país a prerrogativa de escolher o chefe do Ministério Público da União, cuja atuação em assuntos extremamente graves para a vida da Nação, exige uma legitimação ampla que não dos agentes ingressos em carreira por concurso público. Essa eleição associativa tornou-se verdadeiro sequestro corporativo da soberania popular e transformou o procurador-geral num ventríloquo de sua corporação, com toda sua visão distorcida da realidade política.
No judiciário há uma lógica um pouco diversa, já que a verticalidade da carreira é mais acentuada, o que não impede, porém, juízes do rés do chão de se manifestarem, em suas redes corporativas, de forma pouco polida sobre tudo e sobre todos. O corporativismo é permeado por outros mecanismos, como a escala de apoio necessária para a autoconcessão de vantagens. O espírito de corpo legitima ações administrativas em causa própria, na maioria das vezes sacramentadas pelo Conselho Nacional de Justiça.
O que fica claro, para quem conhece a cozinha desses órgãos, é que todo e qualquer controle sobre seus agentes é extremamente frágil, facilitando abusos sempre que aplaudidos pela grande mídia comercial. Por terem telhado de vidro, essas corporações se pelam de medo de serem flagradas com a mão na botija e por isso usam a mídia como termômetro do que podem e não podem fazer.
Num cenário desses, criar mecanismos que coíbam abuso de autoridade é mais do que urgente. Se esses mecanismos devem ser penais, civis ou de responsabilização política é uma questão a ser examinada com mais cuidado. O que é induvidoso, contudo, é que os mecanismos disciplinares internos não se bastam. Nem bastam os conselhos nacionais de justiça e do Ministério Público.
Importante é lembrar, a propósito, que, numa república, ninguém pode se eximir de controles. Nem Suas Excelências, os ministros do excelso sodalício. E se os controles se revelam insuficientes, é preciso reforçá-los. Pugnar por medidas contra abuso de autoridade é republicano, é democrático, por nivelar todos os agentes do estado no princípio da responsabilidade. Ver nessas medidas mera retaliação de corruptos é apenas mais uma cortina de fumaça populista-maniqueísta, de que, no Brasil, estamos fartos, pois levou a uma perigosa clivagem político-social, capaz de nos jogar no precipício do caos nacional.

O ano em que os imbecis venceram

Por Moisés Mendes (no findar de 2016)




Em 1944, quando os nazistas deixaram a França, depois de mais de quatro anos de ocupação, perguntaram ao cineasta Jean Renoir como ele definiria aquele período. Renoir, que havia fugido do nazismo para os Estados Unidos, disse que muitos poderiam ver os franceses mais acovardados, mais amedrontados ou mais brutalizados. Mas ele, olhando de longe, achava que os franceses estavam mesmo mais imbecis pela ação ou omissão de intelectuais, jornalistas e artistas.
Daqui a alguns anos, poderemos fazer a mesma pergunta, não aos outros, mas a nós mesmos, sobre o período que chegou ao auge em 2016 no Brasil e que ninguém sabe quanto tempo poderá durar. Por antecipação, dá para dizer que nos prepararam nos últimos anos para que sejamos todos imbecis. E que a imprensa tem papel decisivo nessa empreitada.
Na França, as perguntas incômodas com o fim da ocupação eram estas: o que se faz agora para entender o colaboracionismo? Como olhar para os que atenderam aos apelos dos nazistas para que colaborassem com a imposição de seu domínio? Os franceses chegaram a planejar julgamentos, mas desistiram. Não haveria, em muitas circunstâncias, como separar omissão, silêncio, distanciamento ou apoio declarado aos que ocuparam o país, perseguiram e mataram.
Quem colaborou ou se calou – e muitos da imprensa, da universidade e das artes fizeram isso – teve o argumento de que não havia, como admitiu Sartre, como fazer parte da resistência declarada sem ao mesmo tempo condenar-se à morte. No Brasil pós-golpe de 64, sem querer comparar contextos e circunstâncias, um argumento semelhante foi usado pelos que se aliaram à ditadura.
Havia na França ocupada pelo nazismo e no Brasil tomado pelos militares nos anos 1960 a imposição da força e do terror fardado. Os que se aliaram ou colaboraram têm esse pretexto, inclusive a imprensa. Poucos dos que sobreviveram, lá e aqui, perfilados com os regimes no poder, admitiram depois que emporcalharam a própria reputação e as reputações e a vida de parentes e amigos. Adesistas não cedem com facilidade à tentação de serem sinceros e honestos consigo mesmos e com os que os rodeiam.
Mas o Brasil das exceções de 2016, do golpe e da ascensão de um governo ilegítimo não está sob ameaça de nenhuma força militar. O ano de 2016 pode ter nos deixado mais imbecis por uma sequência de desatinos levados adiante com naturalidade.
Não há nazistas e militares a fazer ameaças. Políticos, empresários, procuradores, juízes, jornalistas e outros que ainda contribuem para a imbecilização do país não sofreram nenhum constrangimento da força para aderir ao projeto de produzir idiotas. A linha de montagem da imbecilidade é civil.
Mas quem irá se arrepender da contribuição ao projeto para que o país seja idiotizado? Quem bateu panelas sabe hoje o que de fato pretendia? Ou seguiu um pato pela Avenida Paulista? Ou apoiou Janaína Paschoal, ou aplaudiu Lobão, ou considerou a hipótese de que a democracia poderia (como ainda pode) ser trocada por uma eleição indireta?
Qual é a dimensão do drama pessoal do ex-presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, que presidiu as sessões do Senado em que foi decidida a cassação do mandato de Dilma Rousseff? Que força jurídica inquestionável e superior determinou que o chefe da mais alta Corte do país se submetesse aos ritos e às vontades de um Congresso corrupto e golpista? Por que Lewandowski não se indispôs com a liturgia da farsa e não se declarou impedido de levar adiante o processo do golpe?
Por que o país foi conivente até agora com as agressões do deputado Bolsonaro às mulheres? Quem um dia irá se arrepender (em especial os liberais brasileiros) de ter sido silencioso diante dos excessos da Lava-Jato? Com a transformação da prisão preventiva em masmorra desmoralizadora de candidatos a delator? Com o recorde de processos (cinco), decididos em tempos recordes, contra o ex-presidente Lula? Com a vergonhosa impunidade dos corruptos tucanos.
O Brasil ficou mais imbecil em 2016 porque muitos colaboraram com os que articularam as ações de desqualificação da política, de esvaziamento das eleições e de destruição das conquistas da Constituição de 1988. E não há nada, como havia no nazismo e havia na ditadura, não há nenhuma força excepcional que justifique omissões, acovardamentos e colaborações com o golpe e com a sequência de fatos que o consolidam.
O jornalismo estará um dia diante do que lhe cabe no balanço final do processo de imbecilização do país. Na cumplicidade com a manutenção de Eduardo Cunha até a execução do golpe. Nos aplausos ao homem do Jaburu usurpador do cargo de presidente. Na concordância com os desvios de conduta do juiz Sergio Moro. Na participação no processo de seleção de vazamentos que ajudaram a idiotizar desinformados e a empoderar golpistas.
O jornalismo imbecilizador não estava, como estiveram os que enfrentaram o nazismo e a ditadura, sob nenhuma pressão insuportável. Desta vez, a imprensa brasileira contribuiu por conta e risco para a transformação de 2016 no ano da idiotia. A imprensa foi uma das idealizadoras e executoras do projeto de destruição das esquerdas e da democracia e de preservação de todos os envolvidos no golpismo.
Não precisamos esperar que um dia alguém nos diga que em 2016 o jornalismo dito ‘independente’ foi protagonista do plano de imbecilizar o Brasil. E o projeto em curso ainda está longe do que foi idealizado com a ajuda de jornalistas que deveriam denunciá-lo e destruí-lo.

Delação premiada: com a faca, o queijo e o dinheiro nas mãos

Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa





Prender para colaborar ou colaborar para não ser preso é a tônica do modelo “Moro” de processo penal. O acusador fica com a faca, o queijo e todas as cartas para negociar. Não aceita a negociação, segue-se instrução processual e decisão condenatória com pena alta: xeque-mate. Depois de condenado, com a nova interpretação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a pena se cumpre imediatamente ao julgamento em segundo grau, o acusado é constrangido a colaborar. Não delatar é estratégia dominada, para usar a gramática da Teoria dos Jogos.
É justamente aí que reside a troca. Os acusadores, em nosso nome, perdoam, dão descontos de 80% da pena, autorizam prisão domiciliar sem retorno ao cárcere (ainda que sem qualquer previsão legal que autorize), mediante: a) arrependimento e confissão; b) auxílio probatório com “entrega” de comparsas; c) multa pecuniária e/ou devolução de dinheiro.
O padrão brasileiro de negociação faz com que o acusado devolva pequena parcela dos valores fruto da conduta criminosa, entregue alguns envolvidos, fique em prisão domiciliar durante bom tempo, excluindo parentes e amigos das malhas da operação. O foco, então, longe de punir, é recuperar, muito parcialmente, os recursos apropriados, evitando, com todo o cuidado, que sejam os colaboradores inseridos na prisão depois de “arrependidos”. As penas efetivas, em regra, são menores do que de um furto de relógio, na rua, promovido em coautoria por agentes reincidentes (CP, artigo 155, IV). Enfim, o jogo é performático e manipula a maioria. O Ministério Público Federal está trocando centenas de anos de prisão por dinheiro e perspectivas de mais gente ser engolfada pelas investigações.
É interessante como gostamos de “colchas de retalho” sem qualquer coerência sistêmica, regidas apenas por critérios utilitaristas e eficientistas. Como aceitar esse amplo espaço de negociação em um sistema cuja acusação é regrada pelos clássicos princípios de obrigatoriedade e indisponibilidade? Recorrendo a arremedos argumentativos e criando categorias processuais híbridas e malformadas, como obrigatoriedade mitigada, indisponibilidade regrada etc., em vez de assumir e incorporar — como todos os ônus e bônus inerentes — a disponibilidade, oportunidade e conveniência da ação penal (com seus respectivos mecanismos de controle de atuação). Como fixar uma pena de 12 anos sem prévio processo? E o princípio da necessidade (nulla poena sine iudicium)? Como determinar um regime de cumprimento desta pena como sendo o de “prisão domiciliar”, quando isso jamais foi contemplado no sistema jurídico brasileiro? Definitivamente, vamos adotar a legalidade a la carte? Porém, temos todos consciência dos riscos dessa opção?
A fé sem questionamento da lógica da barganha, no processo penal brasileiro, está se infiltrando como verdade consolidada em face dos aparentes resultados que apresenta. Talvez seja o caso de percebermos que a “delação à brasileira” é um emaranhado de possibilidades, em que a prática está dando as coordenadas do que deveria ser previsto em lei. Os ditos resultados, vistos bem de perto, não servem como justificativa de aceitação democrática, até porque monetariamente pífios em face do volume, além dos nefastos efeitos que a operação promove na economia, salvo para os que se entregam à fantasia das aparências ou encontram-se “cegos” pelo ódio ideológico.
O império da barganha pretende transformar o processo penal em grande mercado de pena e culpa. Talvez tenham razão, talvez não. O que pretendemos, aqui, é buscar compreender como os grupos de pressão e as instituições estão exercendo o domínio no nosso cotidiano, ou seja, na forma como pensamos, conversamos e consumimos o produto crime. O comportamento de quem duvida da fé, muitas vezes, é tido como enfrentamento da “causa da corrupção”, para os quais, os arregimentados, sem hesitação, postam-se com ódio contra os não crentes. Os que estão de fora do movimento, da “onda delatória”, são tratados como desertores, ingênuos ou inimigos. Qualquer oposição é tida como afrontamento aos líderes carismáticos que não querem sofrer oposição, já que buscam forçar obediência e conformidade. Declarou-se guerra a quem não está em guerra contra a corrupção.
Aliás, ou a delação premiada é o sintoma da incapacidade de o Estado investigar e produzir prova ou é jogo de cena, porque se há boa investigação, provas robustas, sentenças condenatórias, negociar com um culpado por quê?
As aspirações expansionistas penais não toleram qualquer modo de vida democrático e que tenha o pluralismo das ideias como pressuposto, já que você deve estar em um dos lados: corruptos ou caçadores de corruptos. O maniqueísmo é evidente. A liberdade de expressão ainda é marco democrático que nos autoriza a dizer que os pressupostos teóricos da delação à brasileira estão equivocados e que as práticas reais são performáticas, especialmente porque feitas à sorrelfa. O modo como são produzidas as “colaborações” deveriam vir à público também, para que se saiba a maneira como um representante do Estado negociou o direito público de exercício de ação penal. A transparência pode levar à confirmação da postura democrática ou ao descrédito de muitos. Imagine-se áudios da negociação “vazados” por aí…
Não se trata de defender a corrupção nem de se engajar em cruzada anticorrupção, já que, no fundo, a postura que adotamos é de certo ceticismo contra os que fazem disso a “causa” de suas vidas, porque, no fundo, boa parte da história nos mostra que os que são tão cheios de certezas “odiantes” lutam contra seus fantasmas internos. São sujeitos que podem estar lutando para manter a sustentação imaginária complexa, para os quais o agir no exterior, punindo o outro, pode ser a única possibilidade de dar conta de sua propensão oculta. Como aponta Stuart Sim: “Os detentores do poder desses impérios tradicionalmente exibem um ódio patológico à oposição como uma expressão de sua devoção, e nossos adeptos do século XXI não são uma exceção”[1].
Quem é portador da verdade não se preocupa com os argumentos e em dialogar com o dissidente, no fundo, tido como desertor, porque a crença sem questionamento faz parte do seu modo de ser. Podemos nos submeter passivamente ao império da crença ou, quem sabe, adotarmos atitude mais cética, duvidosa, das maravilhas que a delação premiada traz para os bons. A escolha é sua. Esperamos não ser conduzidos coercitivamente, nem conduziremos ninguém, a concordar. A postura cética não aceita o fundamento único e absoluto, justamente porque no início está a crença. Está um ato de fé e não de razão, para o qual uma autoridade toma o lugar, e diz.
Sustentar o direito de oposição, de minoria, de advogado do diabo, parece ser a postura cética de quem não se converteu à Igreja da Delação Premiada. Sobra-nos um resto de dúvida razoável sobre as práticas e técnicas, uma leve suspeita sobre os benefícios que tanto divulgam. O tempo dirá. E respeitamos os devotos da Igreja da Delação Premiada, porque fé, da ordem da crença, não se discute com a razão.

As sobras de 2016 sobre a palidez de 2017

Por Aldo Fornazieri





Ao contrário do que se apregoa no senso comum, o ano de 2016 não é para ser esquecido. A imprudência humana faz com que as pessoas olhem muito mais para o presente e esqueçam o passado. As suas esperanças, sempre necessárias, fazem com que toda a poesia dos tempos seja buscada no futuro. Os líderes políticos, de modo geral, também caem nessas armadilhas. Somente alguns profetas e os republicanos estóicos projetaram esperanças a partir das advertências e das dores do passado. O positivismo, o liberalismo, o cientificismo e o marxismo contribuíram enormemente para o esquecimento do sentido trágico da vida e da história e para a perda da percepção acerca do caráter ruinoso do tempo. Mesmo sob o impacto de acontecimentos recorrentemente terríveis foi se firmando uma visão progressiva e otimista da história. O otimismo infundado faz com que as pessoas vejam as tragédias longínquas, as tragédias dos outros, mas não aquelas que estão diante delas próprias. Essa atitude amnésica perante a vida e a história recusa o aprendizado com as experiências e extração das lições dos acontecimentos. O esquecimento torna-se um bálsamo para os fracassos, as culpas e até mesmo para os crimes.
Os líderes, os partidos, os empresários, os trabalhadores, nos tempos de relativa tranquilidade, esquecem-se das artimanhas da Deusa Fortuna, da insubsistência das posições conquistadas e da mudança de rumo dos ventos e dos tempos. Não convocam a prudência, nem para antever os riscos do futuro, nem para construir os diques para conter os rios revoltosos e destrutivos animados pelo imprevisto, pelo acaso e pelo contingente.
Pois bem. O ano de 2016, foi prolífico em desmontar as certezas de várias "ciências", a empáfia arrogante de poderosos, e arremessou não só o Brasil, mas o mundo, no redemoinho sísmico do imponderável e do imprevisível. Alcunhado por alguns como o "ano cataclísmico", ele fez emergir com virulência o medo, a insegurança e a desesperança.
Cinzas sobre a democracia
Atendo-se apenas ao Brasil, não há como negar que o golpe do impeachment recobriu de cinzas a democracia. Os acontecimentos de 2016 governarão 2017 e outros anos vindouros. Quem quiser extrair alguma lição do que aconteceu deve aprender que não se pode brincar de ser democrata. Em nome do combate à corrupção elevou-se ao governo a quadrilha mais corrupta da política brasileira. Muitos avalistas do golpe aceitaram a tese de que não havia motivo constitucional para tirar Dilma do poder, mas que era preciso fazê-lo, pois ela tinha perdido a condição de governar. É verdade que havia um alto grau de ingovernabilidade. Mas o que se vê agora é um governo ilegítimo que é avaliado como pior do que o governo que se foi, mas que era legítimo. É preciso aprender que não se pode assaltar a soberania popular em nome do incerto e de interesses escusos. O país foi mergulhado numa crise institucional que se agrava, com um governo e com um Congresso que atacam a Constituição, fruto de uma Constituinte, e com um Judiciário acovardado, para dizer o mínimo.
O que se vê agora é a maioria da população brasileira assustada com o seu futuro, desalentada com a perspectiva do advento da velhice, desassistida em direitos, violentada com a proposta de reforma da Previdência. Esta enorme nuvem lançada no final de 2016 por políticos e tecnocratas criminosos desconsidera o que significa levar a vida de um pequeno camponês, que chega aos 55 anos estropiado. Não leva em conta o que significa trabalhar até os 55 ou 60 anos numa fábrica, quando as articulações dos membros doem e mal respondem. O Brasil não é a França e o grau de desenvolvimento tecnológico da França proporciona aos trabalhadores daquele país condições bem diferentes daquelas dos trabalhadores brasileiros. Os políticos e tecnocratas usurpadores não levam em conta esta brutal realidade, pois eles têm seu futuro garantido pelos privilégios do poder pagos pelo povo.
As sombras cinzentas de 2016 já levaram mais de 12 milhões de trabalhadores ao olho da rua. Este número irá crescer. Bolsões de pobreza e de fome estão se reconstituindo e ampliando. Os instrumentos de produção de ciência e tecnologia estão sendo arrasados. As verbas para a saúde, educação e habitação estão minguando. O país está entregue ao mais voraz capitalismo predador. O peso do ajuste está sendo jogado com brutalidade e sem piedade sobre os ombros dos mais pobres.
A vergonhosa mudez dos políticos
O que mais espanta, nesse momento, é o silêncio oportunista e vergonhoso dos políticos acerca de saídas para a crise. Os líderes partidários e os parlamentares, além de promoverem os tradicionais privilégios, se resumem a proclamar as platitudes e redundâncias de sempre, as escaramuças da baixa política, as declarações de princípios vazios, os formalismos farsescos, e assim por diante.
Não há uma voz para ser ouvida. Não há um caminho indicado para ser seguido. Não se ouvem palavras frutíferas. Não se entoam hinos enérgicos e mobilizadores. Não há um passado glorioso a restaurar. Não se leem programas e estratégias empolgantes. Líderes acuados apresentam fisionomias cansadas. Toda sorte de velhacos em Brasília promovem todo tipo de conspiração. Altos funcionários do Estado se elevaram à condição de justiceiros ao arrepio da lei. Os partidos estão mortos. A política está morta, rejeitada como algo abjeto pela maioria da população.
Na esquerda, em que pese o ânimo de luta de muitos ativistas e movimentos sociais, o que se vê é uma exaustão com os partidos e com os políticos que estão ali. As bases desconfiam dos líderes. A juventude que luta está órfã de esperança. As necessárias lutas localizadas, territorializadas, específicas, carecem de capacidades de universalização, pois não há nenhuma agenda ou plataforma unificadora. As periferias, com uma exceção aqui outra acolá, abandonadas e solitárias em relação aos partidos, buscam empreender seus próprios caminhos, quando e onde é possível.
Diante do agravamento da crise voltou-se a falar em diálogo, em acordo nacional. O problema é "diálogo" entre quem e para quê. Não é possível validar um diálogo somente entre as cúpulas partidárias que produziram essa crise. Um diálogo sem uma posição de centralidade da sociedade civil e dos movimentos sociais não deve ser validado. No Brasil, os diálogos e os acordos sempre resultaram em frustração e em engano para o povo. Qualquer diálogo que se pretenda legítimo precisa partir do seguinte pressuposto: 1) retirada da proposta de reforma da Previdência; 2) retirada da proposta de reforma trabalhista; 3) suspensão da PEC do tetos dos gastos; 4) investigação de todos os partidos e políticos envolvidos em corrupção, incluindo o PSDB. Se os movimentos sociais e os ativistas progressistas derem seu aval que não contenha esse pressuposto estarão caminhando para o auto-engano. Somente a partir da aceitação desse pressuposto poder-se-ia buscar uma saída para a crise de governo.