por Wadih Damous
Esqueçamos
as sutilezas: o PSDB, derrotado nas urnas, está buscando a manifestação
de juristas para derrubar o governo eleito democraticamente.
A Folha de São Paulo publicou nesta semana artigo de Ives Gandra
Martins, consistente na síntese de um parecer que ele próprio teria
elaborado acerca da existência de fundamento jurídico para o impeachment
de Dilma Rousseff.
Segundo ele, ao contrário do que alguns veículos de mídia já haviam
noticiado, o parecer não foi contratado por nenhum empreiteira, mas sim
por um advogado a ele próximo, Dr. José de Oliveira Costa, que vem a ser
– coincidência? - advogado de Fernando Henrique Cardoso e membro do
Conselho do Instituto FHC.
Segundo o resumo publicado, o parecer teria analisado diversos textos
legais para chegar à conclusão de que a hipótese de impeachment por
culpa (e não por dolo) seria juridicamente possível e que há
concretamente culpa configurada por parte de Dilma relativamente aos
alegados desvios e supostos atos de má gestão na Petrobras.
Ives Gandra afirma não saber quem é o verdadeiro contratante, enquanto o
advogado contratante diz que a contratação do parecer não tem conotação
política.
Como não acredito em “coincidências” na política, vamos deixar de lado
as filigranas: pareceres jurídicos são contratados por centenas de
milhares de reais para fundamentarem alguma investida jurídica, não para
mero deleite ou sede de aprendizado de seu contratante.
Também não é razoável, para dizer o mínimo, que um advogado contrate um
parecer para si próprio (ainda que o faça em seu nome), e sim para algum
cliente seu que pretenda se amparar em seus fundamentos e conclusões
para adotar determinada medida juridicamente relevante, seja preventiva,
seja contenciosa.
Outra “ingenuidade” é achar que alguém contratado para elaborar parecer
jurídico tem liberdade para analisar a questão a ele apresentada, de
forma neutra. A não ser em caso em que o parecer tem finalidade
puramente preventiva (o que obviamente não é o caso, já que trata de
fatos já consumados), ninguém pagará centenas de milhares de reais sem
saber as conclusões que serão apresentadas. Na prática, a liberdade de
convicção do parecerista se limita à recusa em elaborar o parecer, por
ter convicção jurídica que contraria os interesses do contratante.
Ainda por cima, tal artigo foi publicado poucos dias após Fernando
Henrique Cardoso (ao que tudo indica, verdadeiro contratante do parecer)
ter publicado artigo em que defende abertamente a virada de mesa por
meio de alguma investida jurídica. Também não pode ser coincidência o
fato de terem apelado, logo de início, para um jurista notoriamente
conservador e entusiasta do golpe civil-militar de 1964, do Ato
Institucional-5 e da repressão praticada naquele triste período da
história brasileira.
Então, esqueçamos as sutilezas: o PSDB, derrotado nas urnas, está
buscando a manifestação de juristas para derrubar o governo eleito
democraticamente. Não é à toa que, ao final do artigo, Ives Gandra
afirme já contar com o apoio informal de outros dois juristas de renome.
Bem, quanto ao mérito, o artigo revela pouco sobre o conteúdo substancial do parecer.
Mas, pelo tal resumo, Dilma teria cometido crime de responsabilidade ao
não impedir, enquanto Presidente do Conselho de Administração da
Petrobras, que ocorressem desvios de dinheiro e que a empresa fosse
prejudicada pela compra da refinaria de Pasadena, e, enquanto
Presidenta, de “manter a mesma diretoria que levou à destruição da
Petrobras”.
Além de amparar tais conclusões em fatos cuja existência e dinâmica
ainda não foram apuradas satisfatoriamente pelos órgãos competentes, bem
como lançar a polêmica tese de que os crimes de responsabilidade podem
ser omissivos, o que Ives Gandra está propondo, em suma, é que o
Administrador Público deve responder criminalmente pelos atos de seus
subordinados.
Trata-se do mesmo Ives Gandra que, em passado recente, ao emitir opinião
pessoal livre (e não por ocasião de um parecer encomendado),
manifestou-se veementemente contra a teoria do domínio do fato, a qual,
como é sabido, amparou parte das condenações na Ação Penal 470,
conhecida como “mensalão”. Repare-se que, nessa ocasião, não estava em
jogo a destituição de um governo, mas apenas a condenação criminal de
alguns cidadãos. Confira-se uma de suas manifestações sobre o tema:
– Com ela (teoria do domínio do fato), eu passo a trabalhar com indícios
e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que
trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você
não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela – e
basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio
do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos
brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica
monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me
preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do in dubio pro reo.
Ora, a vingar o raciocínio do Ives Gandra de 2015, chegar-se-ia à
absurda consequência de se sujeitar o Presidente da República ao
impeachment caso qualquer servidor público federal, em qualquer
instância, pratique ato de improbidade e saia ileso, seja por não ter
processo disciplinar instaurado, seja por ter sido indevidamente
absolvido.
O raciocínio está errado, em primeiro lugar, porque o parecerista adota
parâmetros da lei de improbidade para configuração de ato penalmente
relevante. A analogia não é possível, já que a principiologia do direito
penal é substancialmente diversa e tem como princípios fundamentais,
dentre outros, a presunção de inocência e o in dubio pro reo. Por
força dessa principiologia não há que se falar, no caso de crimes de
responsabilidade, de modalidade culposa, a qual só poderia ser admitida
por disposição expressa de lei.
Outro erro de premissa na tese de Ives Gandra é a de tentar atribuir
crime de responsabilidade à Presidenta por ato praticado em outro cargo
(Presidente do Conselho de Administração da Petrobras). Ora, o crime de
responsabilidade é crime próprio do Presidente da República, Ministros
de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral
da República, por atos praticados no exercício dessas funções. Com
relação ao Presidente da República, isso está mais do que claro no Art.
4º da Lei 1.079/50: só configuram crime de responsabilidade atos
praticados no exercício do respectivo cargo.
Já a tese de que a Presidenta poderia ser responsabilizada pelo simples
fato de não ter trocado a direção da empresa, cabe lembrar que a
Petrobrás não é um órgão da Administração Direta, e sim uma sociedade de
economia mista de capital aberto, da qual a maior parte das ações com
direito a voto são titularizadas pelo governo federal.
A Presidência, tecnicamente, não nomeia ou destitui seus diretores por
ato meramente discricionário, tal como se daria no caso de um cargo de
confiança, ou mesmo no caso da nomeação ou destituição de Ministros de
Estado.
Pode-se até dizer que, na prática, acaba ocupando o posto a pessoa
indicada pela Presidência da República. Porém, tecnicamente, quem o
elege é o Conselho de Administração, que pode alçar ao posto pessoa
diferente daquela indicada pelo governo ou mantê-la a despeito da
vontade do chefe do Poder Executivo.
Ainda que não fosse assim, a nomeação ou destituição de diretor nada tem
a ver com sua responsabilização, que pode se dar apesar ou
independentemente de sua permanência no cargo.
Reitere-se, ainda, que a tese está amparada em fatos cuja ocorrência sequer está ainda comprovada.
Por fim, cabe observar que o próprio Ives Gandra reconhece a inutilidade
de sua equivocada tese jurídica, ao afirmar, com razão, que o processo
de impeachment tem natureza política. Não custa lembrar, também, que as
autoridades que podem sofrer impeachment não estão sujeitas à ação de
improbidade administrativa, por conta da vedação do bis in idem – punir alguém duas vezes pelo mesmo fato.
Fica, então, essa reflexão ao leitor: qual Ives Gandra está correto? O
que, enquanto “advogado militante há 56 anos“, preocupou-se com a grave
ameaça ao Estado Democrático de Direito e ao Devido Processo Legal,
rechaçando a responsabilização em cadeia dos chefes sobre os atos de
seus subordinados no chamado mensalão, ou o Ives Gandra parecerista,
chamado à trincheira da oposição, por meio da emissão de parecer
contratado por aqueles que pretendem dar aparência legal para disfarçar
um golpe de estado?
A vontade das urnas tem que prevalecer!
Foto: Assembleia Legislativa de São Paulo
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