por Slavoj Žižek
12/01/2015 em Blog da Boitempo
É agora – quando estamos todos em estado de choque depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo – o momento certo para encontrar coragem para pensar. Agora,
e não depois, quando as coisas acalmarem, como tentam nos convencer os
proponentes da sabedoria barata: o difícil é justamente combinar o calor
do momento com o ato de pensar. Pensar quando o rescaldo dos eventos
esfriar não gera uma verdade mais balanceada, ela na verdade normaliza a
situação de forma a nos permitir evitar as verdades mais afiadas.
Pensar significa ir adiante do pathos da
solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e
culminaram no espetáculo de domingo, 11 de janeiro de 2015, com grandes
nomes políticos ao redor do globo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de
Netanyahu a Abbas – talvez a imagem mais bem acabada da falsidade
hipócrita. O verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado
na capa do semanário uma grande caricatura brutal e grosseiramente
tirando sarro desse evento, com cartuns de Netanyahu e Abbas, Lavrov e
Cameron, e outros casais se abraçando e beijando intensamente
enquanto afiam facas por trás de suas costas.
Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade
os homicídios como um ataque contra a essência das nossas liberdades, e
condená-los sem nenhuma ressalva oculta (como quem diria “mas Charlie Hebdo estava
também provocando e humilhando os muçulmanos demais”). Devemos também
rejeitar toda abordagem calcada no efeito mitigante do apelo ao
“contexto mais amplo”: algo como, “os irmãos terroristas eram
profundamente afetados pelos horrores da ocupação estadunidense do
Iraque” (OK, mas então por que não simplesmente atacaram alguma
instalação militar norte-americana ao invés de um semanário satírico
francês?), ou como, “muçulmanos são de fato uma minoria explorada e
escassamente tolerada” (OK, mas negros afro-descendentes são tudo isso e
mais e no entanto não praticam atentados a bomba ou chacinas), etc.
etc. O problema com tal evocação da complexidade do pano de fundo é que
ele pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: ele também coordenou
uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no
entanto era completamente justificável combater o regime nazista com
todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes,
agravos e ressentimentos que condicionam atos terroristas são
verdadeiros ou não, o importante é o projeto político-ideológico que
emerge como reação contra injustiças.
Nada disso é suficiente – temos que pensar
adiante. E o pensar de que falo não tem absolutamente nada a ver com uma
relativização fácil do crime (o mantra do “quem somos nós ocidentais,
que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para condenar atos
como estes?”). E tem menos ainda a ver com o medo patológico de tantos
esquerdistas liberais ocidentais de sentirem-se culpados de islamofobia.
Para estes falsos esquerdistas, qualquer crítica ao Islã é
rechaçada como expressão da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi
acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é portanto
responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte etc.
O resultado de tal postura só pode ser
esse: o quanto mais os esquerdistas liberais ocidentais mergulham em seu
sentimento de culpa, mais são acusados por fundamentalistas muçulmanos
de serem hipócritas tentando ocultar seu ódio ao Islã. Esta constelação
perfeitamente reproduz o paradoxo do superego: o quanto mais você
obedece o que o outro exige de você, mais culpa sentirá. É como se o
quanto mais você tolerar o Islã, tanto mais forte será sua pressão em
você…
É por isso que também me parecem insuficientes os pedidos de moderação que surgiram na linha da alegação de Simon Jenkins (no The Guardian
de 7 de janeiro) de que nossa tarefa seria a de “não exagerar a reação,
não sobre-publicizar o impacto do acontecimento. É tratar cada evento
como um acidente passageiro do horror” – o atentado ao Charlie Hebdo
não foi um mero “acidente passageiro do horror”. Ele seguiu uma agenda
religiosa e política precisa e foi como tal claramente parte de um
padrão muito mais amplo. É claro que não devemos nos exaltar – se por
isso compreendermos não sucumbir à islamofobia cega – mas devemos
implacavelmente analisar este padrão.
O que é muito mais necessário que a
demonização dos terroristas como fanáticos suicidas heroicos é um
desmascaramento desse mito demoníaco. Muito tempo atrás, Friedrich
Nietzsche percebeu como a civilização ocidental estava se movendo na
direção do “último homem”, uma criatura apática com nenhuma grande
paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, ele não
assume nenhum risco, buscando apenas o conforto e a segurança, uma
expressão de tolerância com os outros: “Um pouquinho de veneno de tempos
em tempos: que garante sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para
uma morte agradável. Eles têm seus pequenos prazeres de dia, e seus
pequenos prazeres de noite, mas têm um zelo pela saúde. ‘Descobrimos a
felicidade,’ dizem os últimos homens, e piscam.”
Pode efetivamente parecer que a cisão entre
o Primeiro Mundo permissivo e a reação fundamentalista a ele passa mais
ou menos nas linhas da oposição entre levar uma longa e gratificante
vida cheia de riquezas materiais e culturais, e dedicar sua vida a
alguma Causa transcendente. Não é esse o antagonismo entre o que
Nietzsche denominava niilismo “passivo” e “ativo”? Nós no ocidente somos
os “últimos homens” nietzschianos, imersos em prazeres cotidianos
banais, enquanto os radicais muçulmanos estão prontos a arriscar tudo,
comprometidos com a luta até sua própria autodestruição. O poema “The
Second Comming” [O segundo advento], de William Butler Yeats parece
perfeitamente resumir nosso predicamento atual: “Os melhores carecem de
toda convicção, enquanto os piores são cheios de intensidade
apaixonada”. Esta é uma excelente descrição da atual cisão entre
liberais anêmicos e fundamentalistas apaixonados. “Os melhores” não são
mais capazes de se empenhar inteiramente, enquanto “os piores” se
empenham em fanatismo racista, religioso e machista.
No entanto, será que os terroristas
fundamentalistas realmente se encaixam nessa descrição? O que obviamente
lhes carece é um elemento que é fácil identificar em todos os
autênticos fundamentalistas, dos budistas tibetanos aos amistas nos EUA:
a ausência de ressentimento e inveja, a profunda indiferença perante o
modo de vida dos não-crentes. Se os ditos fundamentalistas de hoje
realmente acreditam que encontraram seu caminho à Verdade, por que
deveriam se sentir ameaçados por não-crentes, por que deveriam
invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele
dificilmente o condena. Ele só benevolentemente nota que a busca do
hedonista pela felicidade é auto-derrotante. Em contraste com
os verdadeiros fundamentalistas, os pseudo-fundamentalistas terroristas
são profundamente incomodados, intrigados, fascinados pela vida
pecaminosa dos não-crentes. Tem-se a sensação de que, ao lutar contra o
outro pecador, eles estão lutando contra sua própria tentação.
É aqui que o diagnóstico de Yeats escapa ao
atual predicamento: a intensidade apaixonada dos terroristas evidencia
uma falta de verdadeira convicção. O quão frágil não tem de ser a crença
de um muçulmano para que ele se sinta ameaçado por uma caricatura besta
em um semanário satírico? O terror islâmico fundamentalista não
é fundado na convicção dos terroristas de sua superioridade e em seu
desejo de salvaguardar sua identidade cultural-religiosa diante da
investida da civilização global consumista.
O problema com fundamentalistas não é que consideramos eles inferiores a nós, mas sim que eles próprios
secretamente se consideram inferiores. É por isso que nossas
reafirmações politicamente corretas condescendentes de que não sentimos
superioridade alguma perante a eles só os fazem mais furiosos,
alimentando seu ressentimento. O problema não é a diferença cultural
(seu empenho em preservar sua identidade), mas o fato inverso de que os
fundamentalistas já são como nós, que eles secretamente já
internalizaram nossas normas e se medem a partir delas. Paradoxalmente, o
que os fundamentalistas verdadeiramente carecem é precisamente uma dose
daquela convicção verdadeiramente “racista” de sua própria
superioridade.
As recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam o velho insight
benjaminiano de que “toda ascensão do fascismo evidencia uma revolução
fracassada”: a ascensão do fascismo é a falência da esquerda, mas
simultaneamente uma prova de que havia potencial revolucionário,
descontentamento, que a esquerda não foi capaz de mobilizar.
E o mesmo não vale para o dito
“islamo-fascismo” de hoje? A ascensão do islamismo radical não é
exatamente correlativa à desaparição da esquerda secular nos países
muçulmanos? Quando, lá na primavera de 2009, o Taliban tomou o vale do
Swat no Paquistão, o New York Times publicou que eles
arquitetaram uma “revolta de classe que explora profundas fissuras entre
um pequeno grupo de proprietários abastados e seus inquilinos sem
terra”. Se, no entanto, ao “tirar vantagem” da condição dos camponeses, o
Taliban está “chamando atenção para os riscos ao Paquistão, que
permanece em grande parte feudal”, o que garante que os democratas
liberais no Paquistão, bem como os EUA, também não “tirem vantagem”
dessa condição e procurem ajudar os camponeses sem terra? A triste
implicação deste fato é que as forças feudais no Paquistão são os
“aliados naturais” da democracia liberal…
Mas como ficam então os valores
fundamentais do liberalismo (liberdade, igualdade, etc.)? O paradoxo é
que o próprio liberalismo não é forte o suficiente para salvá-los contra
a investida fundamentalista. O fundamentalismo é uma reação – uma
reação falsa, mistificadora, é claro – contra uma falha real do
liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo
liberalismo. Deixado à própria sorte, o liberalismo lentamente minará a
si próprio – a única coisa que pode salvar seus valores originais é uma
esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o
liberalismo precisa da ajuda fraterna da esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sob seus pés.
Pensar os assassinatos de Paris significa
abrir mão da auto-satisfação presunçosa de um liberal permissivo e
aceitar que o conflito entre a permissividade liberal e o
fundamentalismo é essencialmente um falso conflito – um círculo
vicioso de dois polos gerando e pressupondo um ao outro. O que Max
Horkheimer havia dito sobre o fascismo e o capitalismo já nos anos 1930 –
que aqueles que não estiverem dispostos a falar criticamente sobre o
capitalismo devem se calar sobre o fascismo – deve ser aplicada também
ao fundamentalismo de hoje: quem não estiver disposto a falar
criticamente sobre a democracia liberal deve também se calar sobre o
fundamentalismo religioso.
A tradução é de Artur Renzo. Uma versão encurtada deste artigo foi publicada em inglês no New Statesman em 10 de janeiro de 2015.
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